Altos voos e quedas livres

Onde foram parar aqueles perfumes, cheiros de desejo e arrebatamento que me impeliam rumo ao delírio e à perdição?

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  • Paulo Sales

Publicado em 25 de dezembro de 2023 às 05:00

Sempre acalentei o sonho de voar. Planar feito um condor na imensidão dos Andes, mergulhar no vazio como uma águia ou viajar por continentes que nem patos selvagens. Passo um bom tempo assistindo a vídeos daqueles heróicos desbravadores do ar, que se projetam no nada com suas asas deltas ou wingsuits (macacões com asas que deixam os praticantes parecendo esquilos voadores). Gosto dessas modalidades porque não são quedas livres, como no paraquedismo, mas sim um voo plácido e contemplativo.

Devia ter em torno de seis anos quando vi João Gibão sobrevoar o vilarejo onde vivia, no último capítulo da novela Saramandaia. O personagem de Juca de Oliveira sorria com suas asas enormes recém-libertadas nos ombros, embalado pela canção Pavão Mysteriozo, de Ednardo. Ali talvez tenha sido o meu primeiro alumbramento: a possibilidade de suprimir o efeito da gravidade e por tabela driblar a mediocridade dos seres que habitam a terra.

É curioso que aprecie tanto o ato de voar. Logo eu, que tenho medo de avião e só entro em um após tomar um comprimido de Lexotan. A altura me causa vertigem e evito me aproximar de abismos, talvez para não ser atraído por eles. Há o temor da queda e do sofrimento antes do encontro com o chão. Somos Ícaro e vivemos e morremos como ele: pelo destemor e pela vulnerabilidade. Frágeis, sem asas ou ossos ocos, incapazes de reproduzir até mesmo o reles flutuar de uma mosca.

No livro Altos Voos e Quedas Livres, Julian Barnes medita: “Nós vivemos na superfície, no nível horizontal, e no entanto – e por isso – nós sonhamos. Animais rasteiros, nós às vezes chegamos tão longe quanto os deuses. Alguns voam através da arte, outros da religião; a maioria do amor. Mas quando voamos, podemos cair. Existem poucos pousos suaves. Nós podemos nos ver batendo no chão com violência, arrastados na direção de uma estrada de ferro estrangeira.”

A vida é, de certa forma, um contínuo decolar e desabar, até que este por fim prevalece. Planamos na inocência da infância e na impetuosidade da juventude. Planamos até na maturidade. Enquanto isso, observamos ao redor o declínio do arco em direção ao solo. Tenho acompanhado minha mãe com frequência nas visitas a médicos e fisioterapeutas. Ajudo-a a sair do carro, dou-lhe a mão para evitar que tropece e a auxilio nas conversas. Sinto ternura e compaixão por alguém com quem convivi no auge, inquieta e ao mesmo tempo contemplativa, batalhando para criar a mim e aos meus irmãos. Ela já não voa.

Minha filha, em contraposição, ensaia voos mais longos. É uma jovem águia ou – pelo seu jeito doce e delicado – um rouxinol. Quando tinha 15 anos, ela sentiu durante vários meses uma dor muito forte nas costas, nos fazendo ir a médicos das mais diversas especialidades e realizar um sem-fim de exames. Ninguém sabia diagnosticar com clareza a causa da dor. Foi um tempo duro e sofrido, mas ela ficou curada após sessões de acupuntura com um médico oriental por quem tenho enorme gratidão. Chama-se Dr. Lim.

Com discrição e sabedoria, ele sugeriu implicitamente que talvez eu estivesse superprotegendo minha filha e, com isso, provocando algum tipo de estresse nela. Ou ao menos foi isso que depreendi das nossas conversas. Eu estaria então, involuntariamente, a impedindo de voar. Essa é uma conclusão minha, não dele. Se essa percepção teve alguma influência no tratamento, eu não sei. Afinal, como diria Hamlet, há mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe a nossa vã filosofia. Mas o fato é que minha filha não voltou a sentir as dores e hoje se prepara para ascender. Eu, daqui de baixo, a contemplo e torço por ela.

Com esses elementos, construímos o que somos. Abarrotados de memória a ponto de não podermos mais nos elevar como falcões, e sim como galinhas. Temendo a dor da queda, a decrepitude e o silêncio. Ouço agora baixinho a voz de Roberto Mendes e os versos de Capinan: “Ainda me lembro/O claro de aurora/Eu indo embora/Pra não mais voltar/E o teu perfume/No meio do mato”. E, já no final da canção: “Nem as pedras do caminho/Nem as luzes da cidade/Podem mudar o meu destino/Beije agora o seu menino/Não me deixe ir embora/A saudade, flor da memória.”

Onde foram parar aqueles perfumes, cheiros de desejo e arrebatamento que me impeliam rumo ao delírio e à perdição? Amores despedaçados, viagens que pareciam sem volta e os primeiros tropeços com a cara no chão. Onde foi parar aquele menino ensimesmado, criado com carinho pela mãe superprotetora, que torcia pelo sobrevoo final de João Gibão numa aurora que hoje parece tão longe? Altos voos e quedas livres. Ah, tempo, do que você é feito?