Nada de novo no rugir das tempestades

@paulosales1970

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  • Paulo Sales

Publicado em 13 de abril de 2024 às 05:00

Num trecho já ao final de Os Maias, clássico maior de Eça de Queirós, os amigos de longa data Carlos da Maia e João da Ega fazem um breve balanço do que foram e do que poderiam ter sido suas trajetórias pela Terra. A conclusão é desfavorável: “Falhamos a vida, menino!”, diz Ega com certo desconsolo. Carlos responde: “Creio que sim… Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou na imaginação.”

Mais à frente, em outro trecho, Carlos prossegue, resignado: “Não se abandonar a uma esperança – nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada que se chama o Eu ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito universo.”

Ambos cultivaram sólidas ambições na mocidade. Carlos, bonito e rico, queria ser médico e encontrou um amor que se transmudou em tragédia. Ega, intelectualmente privilegiado, jamais conseguiu dar forma ao seu romance, nem ao menos transformou em realidade a revista que publicaria em parceria com o amigo. Suas vidas se consumiram e se desvaneceram na inércia e no torpor de uma sociedade medíocre. A balança da maturidade lhes foi desfavorável.

Mas qual balança se revelaria vantajosa quando confrontamos passado e presente, o que almejávamos e o que obtivemos? A não ser no caso de quem nunca esperou nada de si mesmo, é quase sempre doloroso cotejar a imagem que fazíamos de nós com aquela que miramos hoje no espelho. Uma comparação particularmente cruel e injusta. Eu, por exemplo, queria ser um escritor nos moldes de um Scott Fitzgerald (sim, creiam!). A realidade se impôs e mostrou que escasseava em mim uma matéria-prima essencial: talento.

Hoje, resignado como os dois amigos do romance de Eça, resta-me exercitar o que considero fundamental na vida: cultivar o afeto dos que me rodeiam, adquirir conhecimento e alguma sabedoria, ter sempre uma mesa farta com a presença de bons amigos e, dentro do possível, conhecer novos nacos de mundo. Esses prazeres epicuristas me bastam e me enriquecem. De certa forma, me inspiro nos versos de Maiakovski: “Nestes últimos vinte anos/Nada de novo há/No rugir das tempestades/Não estamos alegres, é certo/Mas também por que razão/Haveríamos de ficar tristes?”

Em O Encontro Marcado, Eduardo – alter ego do autor Fernando Sabino – se vê precocemente confrontado com o que se tornou. Suas aspirações de juventude se esboroaram feito móveis de madeira consumidos por cupins e ele se viu só com os próprios medos e delírios: “O tempo já não tinha importância: não se contava senão em anos, para que se pudesse ver a curva dos dias com mais perspectiva, já convertidos em experiência (…) Numa idade em que os outros mal começam a existir, sem perceber atingia vorazmente a parte mais definitiva de si mesmo.”

Creio que existem pessoas plenamente realizadas. Penso em Verissimo, agora recolhido em seus 87 anos na casa que foi do seu pai, em Porto Alegre, depois de ser vitimado por um AVC. Lá está ele, cercado do calor dos filhos e netos, de uma enorme biblioteca, da memória do seu tempo e da admiração de milhares de brasileiros. Se o encontrasse um dia, certamente diria: és um homem feliz. Imagino que ele timidamente assentiria com a cabeça.

Penso também em algum velho pescador anônimo no litoral do Ceará ou na margem do rio Amazonas. Um homem modesto de pele encrespada, que sequer roçou em um livro, mas que encerra em si a genuína sabedoria do mundo: o ensinamento das nuvens, o furor dos ventos, a fúria das marés, o enigma das águas, o sabor de uma tainha, o saber-se ínfimo e finito. Shakespeare,

Mozart ou Michelangelo lhe são desconhecidos. Ele se dá o direito de prescindir dessa forma de conhecimento, pois cultiva algo de muito ancestral, que vem desde o princípio dos tempos, quando éramos hominídeos em volta do fogo e ao redor só havia breu, medo e perigo.

Por fim, me pergunto: o que define uma vida feliz? Quantas vidas felizes não são apenas simulacros “ instagramáveis” de existências ocas? Será que a felicidade não está também em saber carregar frustrações, compreendê-las e com elas prosseguir? Não faço a menor ideia. Hoje mais cedo, fui ao enterro de um parente. Reencontrei familiares que só costumo ver nessas ocasiões. Os intervalos entre um encontro e outro estão cada vez mais curtos. No gramado vasto que se estende ao redor, milhares de nomes gravados em mármore, entre eles o de meu pai. Tanto esforço na busca pela felicidade para isso?