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Da Redação
Publicado em 14 de novembro de 2013 às 09:03
- Atualizado há 2 anos
Aline Damazio e Edvan Lessa>
Ele caminha como um ilustre desconhecido em alguns bairros de Salvador. De cabeça erguida e com os fones de ouvido que só em poucos momentos repousam sobre a gola da camisa, é mais um negro, rasta, que pega o ônibus a caminho do Subúrbio. No entanto, onde vive é reconhecido como um dos principais porta-vozes da realidade da periferia: o MC Coscarque. Carlos André Costa, o Cosca entre os amigos, movimenta a cena hip hop há pelo menos oito anos. Suburbano de Alto de Coutos, descobriu a poesia em um cotidiano repleto de limitações. Há 32 anos observa de perto a violência e a luta por diretos básicos como boa educação, moradia e lazer. “Sobrou as ruas de Alto de Coutos”, diz.O aprendizado foi conquistado em meio às dificuldades, relembra o MC. “Eu aprendi muito mais com o lado ruim que existe aqui, que não fomos nós que criamos, e sim, que puseram como isca. Como falta de oportunidades e limitações. [Mas] é disso que ganho força.”, resume. "Há algum tempo a galera negava que era daqui, eu já dizia 'não mano, eu tenho que ter afirmação, moro em Coutos , sim'”, diz. >
Foto: Almiro Lopes>
Durante a entrevista em sua casa, na laje que separa a Travessa 14 de Julho da vista exuberante para a Baía de Todos os Santos, a camisa do MC estampava algumas palavras em letras garrafais. Boom Boom Clap Shake Boom Clap. O conjunto de onomatopeias que remetem às batidas do hip hop já dão pistas sobre seu trampo. Quando menino, o terceiro dos sete filhos de Dona Jaci e de seu Carlos Duarte, também fantasiou ser engraxate. Em outra época, assim como boa parte dos garotos de bairros populares, vislumbrou ser jogador de futebol. No entanto, o rumo que tomou não estava na lista das possíveis carreiras. Quando o MC Rappin Hood e Leci Brandão gravaram o sucesso “Sou Negão”, Coscarque decidiu, afinal, que a sua vocação era o rap. Com o apelido emprestado de um chá emagrecedor, o nome Coscarque hoje ecoa numa alusão ao seu trabalho, e não devido ao aspecto franzino que manteve durante toda a infância. É noite, e Coscarque se revela. Durante a movimentação em torno da Praça Tereza Batista, Pelourinho, ele está lá e se prepara para mais um evento ligado ao hip hop. Sisudo, com microfone na mão, bermudas largas, outra camisa com letras garrafais, tênis com cores fortes e movimentos corporais que materializam o som do rap, ele conduz o 3º Round, duelo de rimas entre rappers que acontece todo mês “nas zareas”. Atento aos novatos que fazem freestyle - o duelo de rimas - ele se lembra do tempo em que também fazia batalhas nas ruas e sonhava em ser DJ. “Comecei na oficina de Dj com Bandido, no Nordeste de Amaralina, mas como os equipamentos eram caros e via Juno rimando na Quilombo Vivo e pensei: era aquilo que queria fazer. Assim montei a banda M.U.E e depois a banda H.U.M.".Uma máxima versa que toda paixão tem seus ápices e declínios. No caso de Coscarque, a profecia se cumpriu. “Eu estava dedicado totalmente para fazer um EP, muito apegado a banda e de repente acabou. Nesse momento pensei que não queria mais fazer rap, iria fazer parte do público”. >
Com a desilusão, surgiu a oportunidade de selar o matrimônio com o rap. “Foi aí que e eu conheci o Rangel, o cara que eu mais tenho como referência. Passamos dois anos sem ir para o estúdio, estudando música, assistindo vídeo clipes. Aprendemos como funcionava a organização de eventos”, relembra. Na condição de “ouvinte”, Coscarque, ao lado de Rangel, Dj Gug, criou o grupo de rap Versu2 no qual lançou o EP "Apresento Meus Amigos", em 2011 e realizou apresentações ao lado importantes nomes do rap , como: Mano Brown, MC Marechal, Kamau, Emicida, Dj KL Jay, Don L, Criolo, DaGanja, Família de Rua. A parceria, no entanto, cessou “de forma natural”, segundo o MC, quando os companheiros de palco decidiram seguir carreira solo. Rangel possui hoje uma grande loja online de camisetas voltadas ao hip hop. Equilíbrio>
Ao lado da produtora Lísia Lira, Cosca organiza a sua agenda diária. Quando convém, veste sua farda - camisas e bermudas largas - e põe seu crachá de identificação: um potente fone de ouvido. O operário do rap está pronto para mais um dia de batalha. >
Foto: Almiro LopesEm mais um trajeto entre o Subúrbio e o Centro, o MC segue para outro dia de produção intensa de música. Ele vai ao encontro de parceiros como Álvaro Réu, Jarrão, Sinho e Rangel. E é durante a longa viagem de ônibus que surgem mais algumas rimas novas. O ônibus para de vez em quando, mas Coscarque não. E as ruas se tornam uma extensão do seu escritório. Há dois, anos, depois do expediente em uma agência de publicidade para compor as rimas que segredava. Antes de viver da produção musical, era da função de designer gráfico que pagava as contas. De lá para cá, nenhum outro trabalho foi de carteira assinada. Graduado em Design, produtor musical, Coscarque também se tornou fotógrafo e sócio do Boom Clap, coletivo que movimenta o hip hop e a cultura urbana em Salvador. O olhar zombeteiro, enquanto conversa, se fixa em algum ponto desconhecido. Serenamente, enquanto passa a mão sobre a tatuagem “equilíbrio” que fez no antebraço direito, ele dispara: “ Assim eu sou feliz. Vivendo de música”.>
“O rap dá oportunidade de você poder contar a sua história. Me sinto liberto quando estou fazendo rap. Mais liberto ainda. E a sensação de saber que eu posso ser uma ferramenta que pode quebrar os grilhões, fazer a galera romper a fronteira do gueto mental que é pior do que esse gueto aqui", reflete.>
Segundo Coscarque, graças à música ele participou de um documentário do cineasta norte-americano Spike Lee. Ainda de acordo com ele, o material será lançado ano que vem. Dentre as conquistas mais valiosas Cosca destaca o single “Scarface”, lançado com a participação do Dj KL Jay, membro do grupo Racionais MC's. “É reconhecimento de uma dedicação intensa e exclusiva a uma parada, saca?”, diz.>
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Negro, MC e rasta em Salvador >
Os longos dreads amarrados na altura do pescoço demonstram a forte influência de Bob Marley e da cultura Rastafari na vida de André Costa. Coscarque acredita que ser negro em Salvador tem seu lado bom e seu lado ruim. Para ele, esta é a “cidade da fantasia” por pregar a negritude, igualdade racial, mas muita gente é vitimada pelo preconceito. “Na humildade mesmo, eu não creio nesses padrões de negritude. Quando eu falo de negritude eu falo por mim. Até onde eu vivi e até onde eu enxergo.” Leitor de temas relacionados à resistência negra e às raízes africanas, Coscarque admira personalidades como Malcom X e Martin Luther King. Conta que através do Sarau Bem Black, evento cultural sobre poesia e música negra organizado pelo poeta Nelson Maca, ele incorpora um pensamento mais “combativo” para os seus versos. As impressões colhidas durante o evento também contribuirão para o EP “Cadernos Negros”, que irá focar em pessoas negras. “Aprendi que a maior riqueza que existe em Alto de Coutos são as pessoas. Isso eu levo como ensinamento para o resto de minha vida”, diz. Mas é sobre força de vontade que Coscarque versa para o mundo.“Desistência talvez fosse a melhor das opções, mas tudo que eu falei se mancharia em contradições. Então se recompõe, e compõe, pra tocar corações. Se dispõe. Se preciso for enfrentar canhões. Eu nunca desisti. Eu sei pra que nasci, ver a rua aplaudir, vira-lata latir, não desistir, prosseguir, por mim e por ti.”, canta.>
O especial Somos é produzido pelo time de focas da quinta turma do Correio de Futuro. Acesse o blog.>