Estilistas baianos criam looks inspirados por quimioterapia e elementos hospitalares; veja

Mário Farias e Silverino Ojú traduziram suas próprias lutas pela vida e saúde na passarela

Publicado em 2 de dezembro de 2023 às 09:46

Estilista Silverino Ojú com traje da Coleção Sutura e a Cura Crédito: Rafael Berezinski/Divulgação

Entre as combinações de cores, tecidos, acessórios e texturas, a moda é uma forma de expressão da identidade e de contar histórias. No Afro Fashion Day 2023, os looks criados pelos estilistas Mário Farias e Silverino Ojú traduziram suas próprias lutas pela vida e saúde na passarela montada no Terreiro de Jesus, no Centro Histórico de Salvador, local onde instalou-se o primeiro curso de medicina do Brasil.

“Este ano foi de muitas vitórias. Acabei de passar pela quimioterapia e, logo em seguida, comecei a confeccionar as peças que já estavam desenhadas durante meu tratamento”, conta Farias, que recebeu o diagnóstico de câncer de pele no início de 2022.

Tudo começou quando ele percebeu uma mancha marrom no braço. Mesmo com o tratamento agressivo, que causa muitos efeitos colaterais por conta dos medicamentos quimioterápicos, o designer de moda usou a luta contra a doença como inspiração artística e continuou trabalhando.

No evento, Mário apresentou dois looks que seguiam o tema de realeza, destacando a combinação de vermelho e dourado. “Desenhei as peças ao longo do processo. Fiz parte do Afro Fashion Day, celebrando a vida e a superação. Essa experiência foi um impulso extra na minha vida e foi significativo fazer parte do evento este ano”, afirma o estilista natural de Ubaitaba, no Litoral Sul.

Ao todo, foram 24 sessões de quimioterapia, realizadas a cada 15 dias entre junho de 2022 e julho deste ano. Felizmente, o resultado tem sido positivo e os looks contam uma história de superação, na qual o dourado dos trajes denota não apenas a riqueza, mas também a cura.

Por isso, ele destaca que fazer a coleção para o evento foi um remédio adicional, pois as peças confeccionadas significam etapas vencidas. “Cada gota dourada nas peças representava um dia de quimioterapia e também simbolizava cada exame de sangue realizado para monitorar meu estado de saúde”, revela.

Já Silverino Ojú convive há cerca de 28 anos com complicações decorrentes de uma fratura espontânea, ou fratura patológica, enquanto caminhava no Corredor da Vitória. Por conta da lesão, ele precisou colocar uma prótese total no quadril quando tinha apenas 19 anos. Desde então, outros problemas surgiram, como a osteólise, que é uma redução da massa óssea, solturas, luxações e osteomielite, um tipo de inflamação do osso.

Os procedimentos médicos ao qual foi submetido, como as mais de 10 cirurgias, e as consequências sentidas pelo seu corpo tornaram-se inspiração para o primeiro protótipo da coleção ‘A Sutura e a Cura’, apresentado na 9ª edição do Afro Fashion Day, que ocorreu no último sábado (25). O look tem como tecido principal a bandagem ou atadura hospitalar. As faixas do material foram transformadas em babados, aplicados um a um no forro da saia.

A ideia inicial para a coleção nasceu em 2006, quando o diretor Marcelo Sousa Brito o convidou para criar um figurino com ataduras para a peça ‘Guilda’, que tratava sobre corpos dissidentes e foi premiada com o prêmio Braskem de Teatro. De acordo com Ojú, a sutura, que é a costura do tecido da pele, representa o corte, o conflito, a dor e a batalha contra a inflamação, enquanto a cura simboliza a cicatriz, a ferida fechada, o sinal da experiência e a transformação.

“Foi um desafio conciliar com a fisioterapia, retomar a modelagem e costura e trabalhar com as ataduras. Passei por diversas operações e internações, sendo a última em junho do ano passado. Muitas vezes, gazes e ataduras envolveram meu corpo ferido, o que despertou meu interesse por esse material. Essa é uma das camadas desse trabalho, que é bastante auto-referente”, explica Ojú, que em 2019, participou da exposição Amigo Secreto, uma foto-instalação no Núcleo de Cultura do Tomie Ohtake, com imagens radiológicas da sua prótese de quadril.

Trajetória

Nascido no bairro da Liberdade, na capital baiana, Silverino Ojú cresceu em Pirajá e Dom Avelar. O interesse pelo mundo da moda começou cedo. “Meus pais sempre se importavam com a roupa, minhas tias eram costureiras, e minha mãe mandava fazer roupas sob medida. Desde pequeno, calçava os sapatos dos adultos e desfilava pela casa. Minha mãe sempre atenta ao styling, meu e de minha irmã, nas festas da escola, nos desfiles cívicos”, lembra.

Além da influência da família, o figurinista conta que na adolescência ele assistia a novela Ti Ti Ti, na qual a trama central destacava o mundo da alta-costura. Foi por meio da telinha da TV que o jovem entendeu as possibilidades de uma carreira na área de moda, tão incomum para a realidade soteropolitana dos anos 1980, quando a produção foi exibida.

A primeira coleção de autoria própria foi em um projeto social no final dos anos 1990 a partir dos conceitos de reciclagem e reaproveitamento de resíduos no bairro de Plataforma. As roupas eram feitas de câmaras de ar de pneu, sucatas, papel, plástico e vidro. “A moda que proponho nunca esteve diretamente ligada à produção em série e à venda. Os looks são autorais e únicos, dialogando com o social, valorizando os trabalhos manuais e comunitários. Isso ocorre há mais de 20 anos, quando pouco se falava ou discutia sobre isso”, ressalta.

Ojú trabalhou também em figurinos e produção de objetos para filmes baianos. Desde 2018, o estilista desenvolveu algumas coleções-cápsulas, que são coleções com poucas peças, como ‘Festa Pret'a’, ‘Coleção Hídrica’ e, mais recentemente, ‘A Sutura e a Cura’. Como artista visual, formado em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), participou ainda da Bienal do Recôncavo, além de salões e exposições coletivas em Salvador e São Paulo. Ele transita entre linguagens, desde a pintura em retalhos costurados, passando pela intervenção urbana, instalação e eat-art, um movimento artístico que usa elementos comestíveis.

Assim como o colega de profissão, Mário Farias também tem uma longa trajetória no mundo da moda e da arte. Por ser uma pessoa gay e de família evangélica, ele decidiu sair de Ubaíra para morar em Salvador, mesmo sem saber ler, nem escrever.

O designer começou a carreira por volta dos 17 anos desenhando para algumas marcas famosas na capital, como Mitchel, Sartore, Cris&Co, Banana Maçã, República das Camisetas, Olodum, AraKetu, Zip Náutica e Stop Shop. No Olodum, Farias foi o responsável por desenhar a estampa da blusa vermelha utilizada por Michael Jackson no clipe de ‘They Don’t Care About Us’, gravado em 1995 durante visita do cantor ao Pelourinho.

Com a possibilidade de crescer no mundo da moda, o estilista passou a estudar para se alfabetizar. Por meio do Telecurso 2000 e da modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA) ele conseguiu a formação básica para, em seguida, cursar a faculdade de moda. Hoje, Farias tem mais de vinte anos de atuação no ramo e criou a marca de joias sustentáveis Tábompravocê Acessórios.

“Enquanto os outros eventos de moda o povo preto entra como cota ou minoria, vocês têm a maior passarela preta do país. Isso é o Afro Fashion Day, isso é a celebração do povo preto que sempre foi deixado em segundo plano e vocês mostram que a capital mais preta fora da África têm a passarela mais diversa do mundo”, enaltece George Santhanna, sócio de Farias, ao comparar o AFD com grandes eventos de moda, como a SPFW e a Casa dos Criadores.

O Afro Fashion Day é um projeto do jornal Correio com patrocínio da Vult, Bracell e will Bank, apoio do Shopping Barra, Salvador Bahia Airport, Wilson Sons e Atacadão, apoio institucional do Sebrae e Prefeitura Municipal de Salvador e parceria do Clube Melissa.