‘Tenho medo de falar’, diz Mia Couto

Escritor moçambicano reflete sobre 'presunção' no mercado literário e distanciamentos entre África e Brasil

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  • Fernanda Santana

Publicado em 6 de agosto de 2023 às 15:30

Mia Couto, escritor moçambicano Crédito: Mariano Silva/Divulgação

O escritor moçambicano Mia Couto, 68 anos, não acredita que dá para qualificar a sensibilidade, mas conhece quem pense o contrário – e as consequências disso. “Agora ficou mais importante não o que quero dizer, mas saber as expressões autorizadas por não sei que entidade”, opina o autor sobre o que pensa o atual momento da literatura.

Antônio Emílio Leite Couto, conhecido por Mia, estará em Salvador no próximo sábado, dia 12, para participar da Festa Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô) 2023, que acontece de 9 a 13 de agosto, com seis escritores internacionais, 140 baianos e de diversos estados brasileiros.. Uma semana antes de chegar, o escritor e biólogo conversou com o CORREIO e apresentou os conflitos no trabalho com as palavras.

"Muitas editoras têm um especialista em sensibilidade de leitura. É uma forma de censura não aceitável, não acho que alguém possa ter essa presunção moral de se achar dona de uma sensibilidade mais correta”, avalia."

Mia Couto
escritor

Filho de portugueses exilados em Moçambique, Mia participou das lutas pela independência do país, em 1975. Integrou memória ao fantástico, uniu o adulto à criança de si, para entregar a prosa que fez dele o autor mais traduzido fora do seu país.

Por lá, faz parte de uma minoria numérica - 98% das pessoas são negras. “Para mim, a interrogação é forçada: 'Quem tenho que reparar?'. Sei que tenho que reparar alguma coisa, os moçambicanos. [...] Sinto que tenho a obrigação de não mentir”, afirma, quando o assunto é a visibilização de escritores locais.

Mia Couto, então, fala com verdade sobre literatura, linchamento em redes sociais, cobranças, patrulha sobre a linguagem e o que ele acha urgente: “Desfazer o chão de certezas” .

Você virá pela primeira vez à Flipelô. Você lê ou já leu autores baianos?

Para ser verdadeiro, fui criado nessa onda do Jorge Amado, que era quase um africano para nós. Foi ele que nos mostrou a literatura que estava nascendo nos nossos países de língua portuguesa. Do que conheço no Brasil, não sei quem é baiano, paulistano, pernambucano [risos]. O que é mais triste do que isso é que o que conhecemos da literatura brasileira é o que chega esporadicamente. O que eu leio quando estou no Brasil é o que um amigo recomenda. Não há ligação sistemática. O que é curioso e triste porque houve mais ligação entre a literatura do Brasil e as nossas literaturas nos períodos da Ditadura Militar do Brasil e na nossa Ditadura colonial. Estranho, né?

Por que essa curiosidade triste acontece?

São várias razões. Acho que porque havia de alguma maneira uma preocupação, para reprimir, do Estado com a literatura. Isto é, o Estado foi se soltando desse assunto da produção cultural, que foi entregue ao mercado. São as editoras, que por sua própria conta, publicam e enviam ou não a produção para cá em função do que o mercado deste outro lado pede. Essa é uma das razões fundamentais. 

Depois de tantos anos como escritor, ainda tem paciência para turnês de divulgação de livro ou périplo das feiras de livro? Você estava aqui no Brasil há pouco tempo…

Voltei com dengue, fiquei muito mal [risos]. Mas eu acho que nunca vejo como uma divulgação do livro, vejo como uma visita a um território que aos poucos foi se tornando meu. É como se fosse um eterno retorno. Portanto, faço de contas que não estou fazendo essa outra coisa, que seria essa digressão literária. Só sou escritor quando estou distraído, o resto do tempo eu quero estar muito disponível para esse encontro com pessoas. E no Brasil isso é muito vivo, essa a disponibilidade para encontrar o outro, para contar história, para se abrir.

Esse encontro hoje é muito intermediado por redes sociais. Algo mudou para você, como escritor, com as redes sociais? Você as acompanha?

Alguns amigos meus, com enorme paciência, têm me ensinado algumas coisas, como olhar o Instagram, ficar ligado ao Twitter. É uma coisa que não é decisão minha, não por qualquer preconceito, mas porque nasci para ficar fora disso. Não tem hipótese de eu comprar nada disso. Muita coisa que acontece nesses meios é importante de se acompanhar, mas fico feliz de estar fora, porque me parece que há alguma coisa do pior de nós mesmos que aparece nesses meios.

Então, você tem algum nível de acompanhamento…

Sei o que está acontecendo quando me mandam cópias, sobretudo alguns amigos escritores que me mandam notícias do que está acontecendo nas redes sociais. Eu não tenho nenhum preconceito, faz parte da nossa modernidade, mas eu, por incontinência mesmo, não consigo.

O que acha de um booktuber, como são chamados os influencers digitais e críticos de livros, serem capazes de alavancar ou destruir a venda de um livro? Você acompanha?

Se me chegam, eu leio obviamente e com interesse. Mas continuo a pensar que uma crítica que sai no New York Times, no Financial Times, Le Monde, sobrevivem como críticas de referência. Não ponho o mesmo peso em uma crítica feita em uma rede social de quem não sei quem é. Porque de alguma maneira se democratizou quem pode criticar quem, mas, por outro lado, se perdeu alguma coisa. Acho que para ser crítico tem que ter algum domínio sobre o que é escrever o texto, a arte de ler um texto. O que conta mais hoje não é saber exatamente quem é esse crítico, mas é a dimensão dessa rede social, quantos likes, o poder de influência que pode ter.

Alguns escritores julgam a presença em redes sociais como parte do trabalho de escritor. Você concorda?

Não quero fazer essa conta. Não quero comparecer numa rede social, televisão, por motivo de fazer publicidade. Evidentemente quando vou a visitas como essa no Brasil, vou fazer também isso. Mas se esse é o motivo principal, não quero estar nesse lugar. Acho que tenho sorte, nasci em um lugar e tempo em que os livros se impunham pela qualidade e o circuito ia crescendo a partir disso. Hoje, há uma grande pressa, as pessoas têm que chegar lá e rápido. Não condeno isso, nenhum juízo de moral sobre, mas pertenço a um outro tempo. Para ser publicado no Brasil, por exemplo, eu levei anos. Falava-se da comunidade lusófona, da nossa família, mas eu comecei a publicar no Brasil anos depois. Foi no tempo que tinha que ser.

Como foi esse contato?

Foi com a Nova Fronteira, num tempo em que a literatura africana praticamente não existia no Brasil, depois de uma coleção criada por um professor chamado Fernando Mourão, da USP. Ninguém estava interessado naquele momento em ler coisas africanas. Depois, também saí de lá. Finalmente, a Companhia das Letras me abriu a porta. Tenho que ter na editora não uma empresa, mas alguém com quem eu possa conversar e que me ajude a construir o próprio livro. Preciso de um editor no sentido inglês, de que o editor participa, tem voz, pode criticar o livro. Preciso disso. Não prescindo disso.

E você sempre lidou bem com as críticas?

Procuro aprender com as críticas mesmo quando elas são negativas. Não só as literárias, mas as críticas que me fazem como pessoa. Parto do princípio de que alguma coisa tenho que escutar, alguma coisa tenho que perceber. Claro que que há críticas que percebo que querem me atingir, isso me interessa por dois dias. Mesmo que queiram me atingir gravemente, não quero conferir a mim mesmo essa importância. Só existo porque há um livro, porque há qualquer coisa que eu fiz.

Alguma crítica foi a mais dolorida?

Quando eu publiquei aqui em Moçambique o primeiro livro de contos, em que eu adotava uma linguagem à moda de Guimarães Rosa, tentando que essa oralidade moçambicana entrasse dentro do papel. Procuraram me atingir como se eu estivesse usando o mau português, não sei o que seria o bom português. Mas escreveram que eu estava usando o que seria a ignorância das pessoas para tirar proveito estético disso. Essa crítica tinha intenção muito pouco literária, digamos assim, mas mesmo assim tentei aprender com ela, porque percebi que provavelmente tinha algo que eu não sabia fazer bem e continuo não sabendo.

Aproveitando que estamos falando sobre rede social e crítica, seu amigo e escritor José Eduardo Agualusa não se furtou contra Itamar Vieira Júnior. O escritor baiano jogou no terreno do racismo a crítica que recebeu de uma especialista. Agualusa disse que ele apenas estava sendo criticado. Você acompanhou o debate?

Acompanhei. A lição que eu tiro é que há coisas que eu falarei com Itamar como colegas e amigos. Ali estão misturados vários assuntos, uns dos quais entendo e vivi que é: há um preconceito contra o autor que tem sucesso, de um certo tipo de crítica que olha com certa desconfiança o autor que de repente passou a vender muito. Depois, há outras questões para eu conversar com Itamar. A ideia que não posso acreditar que ele tenha defendido é que só pode entender um certo texto o identitário de onde partiu esse texto, seja por classe, gênero, sexual, ou qualquer outro grupo. Eu não tenho simpatia quanto a isso. A literatura é exatamente o ponto que faz com que o texto seja universal. Se o texto não for universal, ele não é um texto literário. 

Ainda sobre esse assunto. Em um livro sobre escrita de não ficção, William Zinsser escreve que o excesso na linguagem é "o politicamente correto em estado enfurecido". Ele critica, por exemplo, o uso da expressão "área economicamente deprimida" no lugar de "pobre". Estamos com medo de falar? Você tem?

Eu tenho medo de falar, falo por mim. Isto é, acho que agora ficou mais importante não perceber o que quero dizer, mas perceber saber as expressões autorizadas por alguém, não sei quem é a entidade que tem legitimidade. É preciso questionar a linguagem sim, as palavras que usamos não são inocentes, eu próprio tenho encarado, no meu percurso, a necessidade de rever. Mas eu sou muito contra essa ideia que resolvendo isto resolve o principal. Eu quis há dois ou três dias falar sobre uma menina e falei que ela já tinha sido gorda. E o que eu queria dizer sobre essa menina já não pude dizer mais. Todo o assunto passou a ser um julgamento de como eu tinha a ousadia de usar essa palavra. Eu perguntei, então, o que se pode dizer, me ensinem, me ajudem.

Às vezes, a solução que se propõe é tão fora da vida, é tão feita em laboratório, que me parece que acaba por atacar uma ideia por defendê-la mal. Havia uma coisa que o Lenin, o revolucionário da União Soviética que fez coisas terríveis, disse que é muito bonita: 'a melhor maneira de atacar uma ideia é defendê-la de forma ridícula'. Acho que às vezes a gente adota formas bem ridículas para defender uma coisa que é séria e tem que ser respeitada, que é a luta contra o preconceito, contra a exclusão. É verdade, mas não é esse o caminho.

E sobre a garota que você falou, houve desdobramento?

As pessoas que estavam a me criticar não sabiam como eu devia falar. Vou usar a palavra sem medo: ser gordo, em algumas culturas de Moçambique, é positivo. Só agora, em grupos mais urbanos ligados a redes sociais, há a condenação de ser gordo, de ter mais peso, não sei como se dizer. Portanto, a pergunta que fiz foi: 'se eu disser magro há algum problema?'. Não, não havia. O próprio olhar contra o preconceito é preconceituoso. Ser gordo já é um problema. Isto é, esse olhar que se pretende contra a exclusão já está carregado de preconceito.

Quando você ficou com medo de falar?

Uma vez viajei para a Alemanha. Quando cheguei, o diretor da editora estava reunido com grupo de editores e tradutores, e havia uma discussão sobre um livro meu que se passa no final do século de 19. Um general português, absolutamente colonial, estava insultando um moçambicano e o chama 'preto'. O tradutor dizia que eu não podia fazer isso em alemão, com equivalente, porque isso é politicamente incorreto. Mas esse personagem tinha que ser chamado assim, essa era a verdade. Mas eles disseram 'bom, temos uma sugestão', e a sugestão me fez ter medo. E aí comecei a ter medo desses que procuram a limpeza da linguagem.

A solução era usar "excessivamente pigmentando" para dizer preto. Ora, a coisa é tão absurda porque já pressupõe que haja uma norma, algum valor normal, e depois o excessivamente. Eu disse que se essa fosse a tradução, o livro não seria publicado, e o editor concordou que era uma coisa ridícula suavizar uma coisa que eu queria violenta. Então, entregar esses assuntos sensíveis e sérios a pessoas que os defendem de forma tão idiota é municiar os nossos próprios inimigos.

Agora reivindicam a reescrita de livros para cortar trechos. Você é contra, mas disse que a língua tem que ser questionada. Qual seria o meio termo?

O mais importante agora é perceber a ideia que a pessoa está a tentar transmitir. Não matar o mensageiro, mas avaliar a mensagem, mesmo que ele diga palavras que, hoje, se pretendem corrigir. É preciso sobretudo acrescentar, ao invés de apagar. Isto é, a palavra tem que aparecer lá, e o que se pode fazer é uma nota de rodapé que cria o contexto, explica. Não precisa haver uma comissão de censura.

Muitas editoras têm hoje um especialista em sensibilidade de leitura. É uma forma de censura que eu não acho aceitável, não acho que alguém possa ter essa presunção moral de se achar dona de uma sensibilidade mais correta. A sensibilidade que a gente vai encontrar é errando, tendo a permissão de contestar e é isso.

Há palavras proibidas para você?

Não, não tenho, estava procurando rapidamente para ver se encontrava alguma palavra proibida. Há palavras que eu odeio absolutamente, não de agora. Elas quase sempre têm a ver com a maneira como as pessoas moçambicanas pretas eram tratadas na época colonial. Isso marcou a minha infância. Abracei a luta pela libertação nacional para mudar esse mundo pelo ódio que estava oculto em palavras e vocábulos que, penso, traduziam um enorme preconceito racial, um ódio, uma raiva, que a minoria de gente branca alimentava pela gente preta de Moçambique. Essas palavras, sim, eu quero esquecer.

O continente africano passou por um processo de mistificação. A Bahia também passou e passa por isso. Te preocupa que sua literatura possa contribuir para a mistificação de pessoas e lugares africanos?

Preocupa muito. O desconhecimento que há sobre a África faz com que seja tão fácil que uma leitura pessoal de um autor possa ser lida como uma verdade, algo exótico. O que eu quero fazer nos livros é exatamente o contrário, falar sobre o particular Moçambique, não África, porque não sei o que é África, há tantas e tantas diferenças entre os africanos. Esta já é a primeira preocupação: que não seja lida como se a África fosse uma raça.

Ciclone em Moçambique em 2019
Ciclone em Moçambique em 2019 Crédito: Divulgação

Às vezes, me procuram pessoas do Brasil, e a leitura é tão ingênua, tão estereotipada, perguntam se falo iorubá. Essa é uma luta que os brasileiros têm que fazer: perceber o quanto há da África Ocidental no Brasil, mas o quanto não há da África Oriental no Brasil. Esses africanos que são de Moçambique tinham uma outra história e quando chegaram ao Brasil tiveram de estar sujeitos a duas deslocações, a deslocação cruel de onde partiram e a de se deixar absorver por outros africanos, com outras línguas, culturas, religiões.

Penso que é difícil que os brasileiro tenham essa sensibilidade, mas do lado de cá temos. Quando vou procurar uma coisa da escravatura, sempre que tentei fazer essa visita a esse passado, as pessoas dizem 'não abra porta, não queremos lembrar'. É uma percepção totalmente distinta dos africanos da diáspora que querem reconstituir essa história apagada. Há tantas, tantas situações, que, agora, seria muito fácil mistificar.

A partir do que estou a dizer agora, não estou falando uma verdade geral, há em Moçambique quem queira lembrar. Mas quero contar histórias que se apresentam muito menos da África, mas histórias de pessoas. Não tenho outra pretensão além de criar história de gente que invento e não representa nenhuma identidade coletiva. Isto é, quando falo de mulheres, por exemplo, são as mulheres que sou capaz de reconhecer dentro de mim, não quero que aquilo seja bandeira de nenhuma coisa. Quando falo sobre os homens, a mesma coisa.

Fazendo o percurso contrário, quais são as questões aqui do Brasil que são difíceis para que você compreenda?

Nós conhecemos muito mais o Brasil que o Brasil conhece de Moçambique. Mas, isso é óbvio, não há aqui nenhuma queixa, nenhuma crítica ao Brasil, é o que é. Mesmo quando nos apaixonamos pela obra do Jorge Amado, porque romantizamos, de alguma maneira foi porque precisávamos de uma luz verde, de alguém que fosse à frente e que dissesse assim: essas pessoas, mesmo inventadas, romantizadas, podem fazer parte da literatura. Era como se a literatura tivesse um modelo como se houvesse um modelo, o europeu, e depois não houvesse mais nada. Jorge, eu admiro bastante, mas minha inspiração literária que vem do Brasil vem de outra área, mais poética. Nós conhecemos um Brasil muito mistificado, falseado, o conhecimento comum do cidadão comum chega através das piores portas possíveis, chega através das seitas evangélicas, do pior que se faz na televisão brasileira, da música mais comercial.

Em algumas entrevistas você fala sobre o fato de ter a fama atribuída ao fato de ser um homem africano branco. Isso te incomoda?

Essas críticas só acontecem quando estou fora de Moçambique. Em Moçambique, é um não-assunto. Eu tenho que sair de Moçambique para acontecer isso, aqui sou olhado como moçambicano. O primeiro país que eu senti que eu tinha que dar explicação sobre a minha condição biológica, não cultural de escritor, foi no Brasil. Há uns 4, 5 anos, alguém chegou em um debate e começou exatamente assim: 'você é branco, heterossexual e homem, sendo assim, você produz uma literatura que fala sobre homens, negros, mulheres'. Este é o ponto que me parece que não pode ser confundido com alguma coisa que é muito séria, que é a luta contra o preconceito racial, de gênero. Não pode caminhar por esse viés, tem que caminhar por outro viés. Tratar a literatura sob esse ponto de vista é perigoso para a própria literatura. É perigoso para a própria a luta antirracista. Faz muita falta, Fernanda, os brasileiros conheceram a experiência de Moçambique, angolana, africana, da luta contra o racismo. Acho que os brasileiros bebem, sobretudo, daquilo dos Estados Unidos da América, o discurso, a narrativa, a situação histórica dos Estados Unidos, a percepção sobre o que é a raça lá. Valia a pena vocês virem aqui e beber um pouco dessa experiência, porque tem eventualmente aqui uma história que seria importante nós partilharmos.

paulina chiziane
Paulina Chiziane, escritora moçambicana Crédito: Divulgação

O que você respondeu a essa pessoa?

Queria responder uma coisa, mas não fiz, infelizmente [risos]. Eu pensei que não estava a perceber, mesmo que eu estivesse me sentindo julgado, interrogado. Acho que posso falar do Brasil falando de Moçambique. Essa é a minha verdade, posso contar histórias do que vivi. Eu vivi essa luta desde os 17 anos, me entreguei à causa da construção de uma maioria negra no poder. Este país é de 99% de gente preta e por isso não me espanta que em outros países a tensão racial se apresenta de outra maneira. Ali não estava só a questão racial, estavam outras questões de outras entidades que eu não sei se sou essa pessoa para responder. Acho que o que tenho de fazer melhor é colocar o assunto em um outro pé.

Você acha que tem alguma obrigação em divulgar também o trabalho de escritores pretos de Moçambique?

Sempre que viajo trago livros de colegas meus. Eu e meus dois irmãos criamos uma fundação que apoia o trabalho literário de jovens. É óbvio que nem sequer me dou o trabalho de saber quem é aquela pessoa do trabalho que estamos a apoiar, porque obviamente essas pessoas são pretas, pretos. Para mim, a interrogação é sempre forçada: 'Quem tenho que reparar?'. Tenho que reparar os moçambicanos. Sei que tenho que reparar alguma coisa. A luta que eu abracei sempre foi posta como uma luta em que todas as raças participaram da briga contra a sociedade racista. Nunca me foi dito que eu tinha um papel particular por ser branco. Essa luta era tida como uma luta que iria libertar todas as raças, isto é, os brancos moçambicanos que eram uma minoria. E eu sou filho da elite privilegiada seria libertada também. Quando faço isso, faço por gosto, não por expiar alguma culpa, ou fazer alguma coisa nesse papel de reparação histórica. Faço divulgando meus compatriotas moçambicanos.

Mia Couto em 1974 em Moçambique
Mia Couto em 1974 em Moçambique Crédito: Acervo pessoal/ExpressoPT

Já li você falando que viu um Brasil que parecia não ter motivos para sambar. Qual das mazelas brasileiras mais te entristece e por que?

Uma coisa que primeiro me apaixonou no Brasil era o modo de sempre mais ou menos usar a ironia como forma de superar a realidade quase insuportável do cotidiano. Mas se isso é tornado como modo de vida, de olhar o mundo, nós facilmente criamos e naturalizamos situações que não podem ser naturalizadas`. Vivi essas situações no Brasil, em que de repente uma coisa que para mim não era aceitável, de repente toda a gente estava rindo sobre o assunto. Essa coisa que é o jeitinho brasilieiro também me faz lembrar o nosso próprio jeitinho. Não estou ajuizando o brasileiro, não posso ajuizar o povo brasileiro nem nenhum outro povo, mas me faz lembrar aquilo que não gostaria que houvesse aqui no nosso próprio país Moçambique, uma certa permissividade. Mas eu não poderia viver certas coisas do norte da Europa, em que há uma certa moral puritana que castiga tudo, o riso demasiado, a alegria exuberante, o corpo como uma linguagem livre. Por isso eu amo o Brasil também, porque tem essa permissividade, esse grau de tolerância, mas em certo ponto ele nos transforma em algo que nos paralisa.

A força do Brasil é sua fraqueza então?

Um pouco isso [risos]. Rir de si próprio é uma virtude enorme. Isso é muito nosso também, de Moçambique. Muito daquilo que amo do Brasil, talvez eu esteja mistificando, vem da África. A facilidade do riso, com que as pessoas contam as suas histórias e contam sua intimidade. Eu chego ao Brasil e não consigo ficar dez minutos no meu quarto. E isso parece que é muito comum, mas é uma dádiva que o Brasil tem a dar aos outros e a si próprio. Parece o contraditório, é contraditório mesmo, não tenho medo de dizer.

Como o Brasil aparece na sua literatura?

Já absorvi mais do Brasil, agora estou tentando retirar o trabalho de linguagem que durante um certo tempo me ocupava muito, era quase o centro do meu labor literário. Eu tinha que tornar a linguagem plástica. E tinha quase uma espécie de obsessão de a embelezar sempre. Por exemplo, o uso de gerúndio é uma coisa que eu tomava do Brasil. Agora me ocupo muito menos disso. Quero que seja bonito, sim, não porque tenho que embelezar, mas porque é bonito de verdade, porque acontece assim. Ninguém pode tornar alguma coisa bonita. Só há uma maneira de tornar uma coisa bonita: deixar que ela exista como ela é. Quero que meu livro seja bonito pela situação, pela verdade dos personagens, não por causa da interferência minha.

Esse tipo de coisa se aprende, ver o que é bonito de verdade?

Acho que sim. Essa é uma experiência que eu tive. Não tenho muito mais outras grandes lições. Quando eu releio meus livros, que são muito poucas vezes, eu me envergonho muitas vezes do que está ali.

Por que?

[risos] Porque há essa busca por alguma coisa, como se eu tivesse que sair demasiado vestido para a rua. Isso me envergonha. Mas também acho que depois perdi alguma coisa da espontaneidade. Naquela época tinha uma ideia e escrevia. Agora tenho que rever 20 vezes. Agora me transformei muito mais num reescritor. Isso não é por medo de algum cancelamento que possa existir, isso não me preocupa, mas sobretudo é fazer com que eu perceba que eu tenho que fazer essa busca da linguagem, de soluções narrativas, nos encontros que tenho com os outros. Esse homem, essa mulher, esse velho, essa criança, moram dentro de mim e são despertas por causa do outro. Se assim, vale a pena escrever, se não, não é verdade.

Você se arrepende de algum livro?

Sempre que releio qualquer livro que eu tenha feito, sobretudo os primeiros, me arrependo de todos [risos]. Houve uma adaptação de um livro meu, escrito em 1990, para o cinema, e eu ia escrever o roteiro. E eu comecei a pensar que, bem, antes de fazer o roteiro, eu vou reescrever esse livro, vou republicá-lo com uma história quase corrigida.

Você já disse que foi um mau aluno e é um dos autores mais celebrados hoje. O que de mais urgente precisam, aqueles que foram bons alunos, aprender para ler melhor o mundo?

Primeiro, o importante é o que a gente precisa desaprender. Não é só a escola, mas todo modelo que a gente traz da família, o modo de olhar o mundo, representar aquilo que a gente chama de realidade. A escola entrega um modelo de leitura: olha, o mundo é assim. Acho que a solução é não ter medo e perceber que o mundo tem mil leituras diferentes, saber questionar o que a gente sabe. Eu aqui, por exemplo, tenho uma grande felicidade, vivo num confronto de culturas tão diferentes. Não é parecido com o Brasil, com exceção dos indígenas, que normalmente estão em outro universo geográfico. Esse Brasil que eu visito partilha de certos fundamentos religiosos, de sabedorias. Aqui não, as diferenças são tão absurdas. Quando eu digo 'Deus', a pessoa que está a me ouvir esta pensando em outra coisa, Deus para ele é uma outra coisa. Quando eu digo natureza, eu tenho que perceber e me ajustar a um outro formato de olhar o mundo. Então, acho que eu fui muito mau aluno, mas agora quero ser um bom aluno dessa capacidade de desmanchar o meu chão de certezas e tentar perceber que o mundo é feito de vários olhares e não ter medo disso.

Qual livro você ainda gostaria de escrever?

Este que estou escrevendo agora [risos]. É uma coisa que se tornou cada vez mais obsessiva. É como se eu tivesse um amor escondido e em qualquer momento que eu estivesse longe dele, porque ainda trabalho como biólogo, penso que horas eu vou reencontrar esse grande amor e vou namorar com essas personagens, com essa gente.

Você é biólogo, mesmo sendo escritor profissional. Muitos outros escritores reconhecidos seguem esse caminho. Você ainda tem medo de ser escritor?

Tenho sim um pouco de medo que isso tome conta de mim, que essa que é apenas uma identidade minha tome conta das outras e se torne hegemônica e eu não possa ser outras coisas. Quero ser um, vários, quero não ser escritor. Isso é fundamental para mim. Por isso, o que conversamos no inicio da conversa, sobre as redes sociais… sinto sempre que tenho sempre uma obrigação de não mentir. Quando estou em uma digressão como essa, estou apresentando essa que é uma parte minha só. Quando eu sou escritor, não sou essa pessoa que está a falar contigo, sou uma outra pessoa. É do ponto de vista da sinceridade e honestidade que eu me apresento. Muitas vezes digo: quem escreveu o livro não é quem está a conversar com a Fernanda. Mas posso lhe dizer uma coisa, antes que também termine? E eu vou 'dizeres' com toda a sinceridade. Talvez esta seja uma das melhores entrevistas que eu 'fizemos', os dois, durante toda a minha vida.