De que profissionais médicos o Brasil precisa?
-
Da Redação
redacao@correio24horas.com.br
A cada grupo de jovens médicos e médicas que graduamos em nossa escola, seja em solenidades festivas em tempos pretéritos ou por via remota em anos de pandemia, nos fazemos a mesma pergunta: estamos formando o profissional médico que o país precisa? Estamos devolvendo à comunidade que nos financia – servidores públicos (docentes e técnicos) e corpo discente – um profissional de saúde à altura do que a população necessita?
Os requisitos que nos colocam “à altura” desta confiança, da qual somos fiéis depositários, englobam o desenvolvimento de competências, habilidades e atitudes necessárias ao exercício da profissão, aliadas a duas outras características sem as quais, o(a) médico(a) é incompleto(a): ter compromisso social e ser humanista e solidário em essência.
Em um país de desiguais, a ausência desses atributos nos afasta do princípio da equidade, que nos permite dar mais a quem mais precisa, integral e generosamente. Eis, pois, aqui dispostos numa mesma frase os princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde -SUS, o maior patrimônio social do povo brasileiro.
Assim, são esses elementos norteadores que regem a construção do projeto político-pedagógico de um curso de medicina socialmente referenciado. À base do processo estão as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), um conjunto de regras e normativas a serem observadas.
A chamada matriz curricular propriamente dita se inspira, de um lado, em políticas públicas de saúde, estratégias e ações planejadas a partir da identificação das necessidades da população, e, de outro, em princípios pedagógicos que propiciam o adequado processo de ensino-aprendizagem.
A Faculdade de Medicina da Bahia da UFBA, ao longo de sua história, promoveu muitos movimentos relacionados à construção do seu currículo. Nos últimos 20 anos tem havido grande investimento, a partir da concepção explicitada de qual médico a sociedade brasileira necessita.
Os conteúdos são identificados a partir do que a ciência, em suas subdivisões biológicas, humanas e exatas, tem consolidado, revisto, revisitado, incorporado e mesmo questionado a partir da observação cuidadosa, metódica e racional de fatos e fenômenos.
O conteúdo programático se consolida por meio de eixos estruturantes nas grandes áreas do saber médico, que se interligam e se complementam. Aborda a saúde e a pessoa em suas múltiplas dimensões: biopsicossocial, ambiental e espiritual.
Todo esse delicado e trabalhoso processo não pode prescindir, entretanto, de dois outros eixos fundamentais no planejamento do futuro profissional da saúde: o ético-humanístico. que zela pela formação do indivíduo enquanto cidadão e agente transformador, também cuida da ampliação do seu olhar humanista sobre o outro e sobre a comunidade. Falamos aqui, portanto de atitudes, as quais aliadas às competências e habilidades devem moldar o “médico que o Brasil precisa”.
Vale ressaltar a importância, durante o processo de formação, dos exercícios que envolvem o aprendizado da autonomia profissional e o respeito a princípios éticos, permeados pelas atitudes e distintos saberes e muito menos pelos conselhos profissionais.
O outro eixo é o da formação científica, igualmente estruturante na formação médica. O profissional da saúde precisa conhecer com alguma profundidade a metodologia científica, os desenhos de estudos, a bioestatística básica, a medicina baseada em evidências, a função dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) para desenvolver o senso crítico e a leitura analítica, cuidadosa dos artigos, das diretrizes, dos consensos, de todo esse conjunto de dados e informações que lhe são – sem filtros – ofertadas aos borbotões.
Formamos cientistas nas escolas médicas? Saliente-se, essa não é a nossa atividade-fim. Em um grupo de estudantes a grande maioria ambiciona, de fato, o exercício da profissão, planeja ser o(a) médico(a) que cuida, previne ou promove saúde. Um pequeno contingente, entretanto, terá aptidão e foco específico para a pesquisa científica. Esses precisam ser identificados, estimulados e direcionados na sua formação. Sob pena de empobrecimento intelectual, de estagnação ou retrocesso da sociedade, o educador não pode perder o olhar atento sobre o educando.
A crise sanitária provocada pela covid-19, aliada às crises política, econômica e social, distante ainda do seu término, permite reflexões sobre a contribuição do conhecimento científico no enfrentamento da pandemia. A ciência, mesmo se constituindo num espaço de dúvidas e contradições, é a antítese do negacionismo. É a disputa entre a luz e o obscurantismo crescente. No mesmo período em que o Brasil atinge 600.000 mortos, o Ministério da Economia suprime 600 milhões de reais em verbas para pesquisa, além das perdas de direitos trabalhistas, redução de recursos para saúde, educação e outras políticas sociais, num país referência negativa em concentração de renda e desigualdade social cada vez mais intensa.
Na concepção de processos formativos para profissionais da saúde é imperativo compreender que essas são profissões sociais com práticas sociais, em sua essência. A tarefa de estruturar currículos para cursos de medicina deve obrigatoriamente contemplar as diversas áreas do conhecimento. Para além disso, esta construção precisa ser permissiva e permeável à dinâmica da sociedade nos seus aspectos demográficos, sociais, políticos, econômicos, científicos e tecnológicos, ressaltando a necessidade da competência crítica e sensível para a incorporação dos diversos saberes, na justa medida que uma prática social, responsável e comprometida, requer.
Luís Fernando Fernandes Adan é diretor da FMB/UFBA e Lorene Louise Silva Pinto é ex-diretora da FMB/UFBA)
Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores