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Há excelentes atores, mas Tarcísio foi um homem que amou


 

Tenho a impressão de que a pandemia, pra ele, foi coadjuvante

  • Flavia Azevedo

Publicado em 14/08/2021 às 11:00:00
Atualizado em 22/04/2023 às 13:30:10
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Foi um vídeo que assisti, há meses. Tarcísio e Glória falando de amor. Do deles. Agora, com a morte do ator, a entrevista voltou a circular, você acha fácil no Google. É uma preciosidade, uma epifania. Repeti algumas vezes. Dois idosos, na época juntos há 56 anos, contam a própria história ainda vivendo cada sentimento dito.

Neles, falar daquele encontro não me pareceu a autópsia de um romance já vivido, como percebo na maioria dos protagonistas de relações longevas. Era o amor acontecendo ali, aceso. Não havia cansaço nem nostalgia naquela história em curso, entre dois velhos absolutamente cúmplices e apaixonados, de olhos brilhantes, mãos enrugadas e corpos lentos.

Aquele foi um dos poucos momentos em que acreditei que o encontro entre dois desconhecidos, que passam a ser um casal, pode ser a melhor coisa da vida. Isso porque discordo da hierarquia que afirma o romance como ponto central da existência. Pode ser, depende e isso é outro assunto, mas no caso deles, claramente, foi.

Fiquei pensando naquele homem reconhecido como um dos maiores atores brasileiros e tive a sensação de que as telas, o teatro e a fama eram acessórios naquela existência. Hoje, depois da morte dele, ao ver tantas manifestações louvando a inegável grandeza profissional, ao ouvir e ler tantas vezes que ele fará falta para a arte, minha emoção foi pra outro lugar. É que há excelentes atores, mas Tarcísio foi um homem que amou.

Em 1962, quando se conheceram, Glória já tinha dois filhos o que, na época (ainda hoje, olhe ao redor) era defeito gravíssimo. Às mães solteiras (ou separadas), era (ainda hoje, olhe ao redor) reservado o lugar de "vadia". Por mais ressignificado que seja esse termo, você sabe a que me refiro. O fato de serem artistas - portanto, mais "modernos" - não muda nada (ainda hoje, olhe ao redor) e essa escolha já diz muito sobre ele ainda que escrever isso, aqui, seja perigoso por parecer que considero que ele fez um "favor".

Não fez, evidentemente. Mas, no mínimo, esse homem não estava conectado às miudezas convencionadas o que, diante do comportamento do gênero, já é bastante coisa.  É claro que há encontros que subvertem preconceitos e que esses encontros nos surpreendem. Só que é a condução que define se amar vai ser sentimento ou existência.

É existência nos casos em que há disponibilidade, possibilidade de entrega, de estar dentro daquilo, apesar de todas as distrações internas e externas. Conectar com alguém, de fato, é uma profunda - e preciosa - experiência espiritual. Amor é raro e sempre suficiente ou então é uma das aplicações banais da palavra.

Estou tentada a dizer que ele teve fama, fortuna e mulheres gostosas à vontade, mas preferiu viver o casamento dele? Estaria bastante, caso conectada às miudezas convencionadas. Só que não estou. Apenas manter um casamento longo e miserável é comum, com o "juntos" cheio de aspas. Foi muito mais do que isso e tão mais que eu, de longe, acredito porque vi os dois naquele vídeo. Não precisei de mais nada. Tentada a dizer que Glória teve sorte? Sim. Ela mesma diz isso, com todas as palavras. Mas é da imensa sorte dele que falo

Morreu um homem que amou, esse é o fato. Como disse que seria: antes dela. Aos 85 anos. Tenho a impressão de que a pandemia, pra ele, foi coadjuvante. Morreu depois de ter vivido, por quase seis décadas, uma experiência que a maioria das pessoas nunca vai experimentar. Porque a maioria de nós não sabe e chama de fluidez, achando graça do que é incapacidade.

"Quando você saboreia uma coisa gostosa, a sensação que você tem do sabor, tudo, todos os prazeres que você possa ter, você tem quando ama uma pessoa", disse Glória. É isso. É possível que um romance seja a coisa mais plena da vida. Pra esse homem, foi o caso. Eu vi beleza, importância e legado. Principalmente, porque nos lembra de que amor pode ser sólido, firme, palpável, diferente do que se diz por aí, com ares de verdade.