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Conselho federal de negacionistas: como o CFM se tornou o suporte científico do 'kit covid'


 

Para parte da categoria médica, autarquia usa argumento da autonomia médica para permitir a prescrição

  • Thais Borges

Publicado em 16/10/2021 às 11:00:00
Atualizado em 21/05/2023 às 08:24:30
. Crédito: Foto: Shutterstock

Talvez seja o jaleco branco, talvez sejam os anos de estudo por mais tempo do que a média das outras profissões ou mesmo o imaginário de que são trabalhos intimamente ligados a laboratórios, microscópios e estatísticas. No entanto, se teve uma coisa que a pandemia da covid-19 veio para reforçar foi que Medicina e Ciência devem andar juntas, mas que médico não é necessariamente cientista e que nem todo cientista é médico. 

Pode parecer óbvio, mas, poucas vezes, na história da Medicina recente no Brasil, essa reflexão foi tão importante. Agora, a entidade que fiscaliza e regula a prática médica no país - o Conselho Federal de Medicina (CFM) -  está no centro de uma polêmica justamente por ter adotado uma postura considerada negacionista e omissa, na avaliação de parte dos profissionais. Para uma parcela significativa dos médicos, o órgão do qual todos dependem para atuar teria se tornou um braço político do governo federal. 

Às vésperas das comemorações pelo Dia do Médico, nesta segunda-feira (18), a categoria está dividida: de um lado, os que defendem que a ciência seja seguida quanto à recomendação para o não uso de medicamentos ineficazes contra a covid-19 (como cloroquina e ivermectina); de outro, os que afirmam que pesquisas científicas não bastam para descartar esses remédios. Essa declaração foi feita pelo próprio presidente do CFM, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, no início deste mês. Ele está na mira da CPI da Covid e deve ser indiciado no relatório final.

Desde o começo da pandemia, o conselho defendeu a chamada autonomia médica. Esse é um princípio prescrito no próprio Código de Ética Médica, que, em sua versão mais atualizada, de 2010, fala em uma harmonização entre a autonomia do médico e a do paciente. Só que, para muitos profissionais, na pandemia, esse preceito básico estaria sendo usado como artifício para permitir ou não penalizar aqueles que decidissem prescrever medicamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19. 

Ao mesmo tempo, esse cenário também teria possibilitado situações com o escândalo da Prevent Senior. Atualmente, diretores e médicos da rede são suspeitos de homicídio, falsidade ideológica e omissão de notificação de doença obrigatória por terem determinado o uso do 'kit covid'. Eles são investigados pela Polícia Civil e pelo Ministério Público de São Paulo. 

Essa também é a leitura da Defensoria Pública da União (DPU), que entrou com um processo contra o CFM no início do mês, na Justiça Federal de São Paulo. Na ação, ajuizada por defensores de nove estados e do Distrito Federal, a DPU diz que a entidade tem sido "o pilar técnico-científico do negacionismo" na pandemia. A Defensoria pede que o CFM seja condenado a pagar uma indenização de R$ 60 milhões por danos morais coletivos, além de suspender o parecer que trata sobre isso e garantir que todos os médicos sejam orientados quanto à ineficácia desses supostos tratamentos."A gente usa essa expressão porque o CFM ajudou a estimular a ideia de que o tratamento precoce era eficaz sob um suposto argumento científico que não existe, na verdade", explica o defensor regional de Direitos Humanos da DPU em São Paulo, João Paulo Dorini, um dos responsáveis pela ação.“A gente entendeu que o governo federal, principalmente, tem estimulado o ‘tratamento precoce’ e isso não teria sido possível se não tivesse o amparo, digamos, do CFM. Então, eles também são responsáveis por essa má gestão da pandemia no Brasil”, acrescenta Dorini. 

Sozinho Um dos pontos-chave neste contexto foi o parecer nº4/2020, que teve como relator o próprio presidente do conselho. No documento, o CFM afirma que médicos que utilizassem cloroquina ou hidroxicloroquina em pacientes com covid-19 não cometeriam infração médica. Desde o dia 16 de abril de 2020, quando o parecer foi divulgado, essa posição é mantida. 

Entre as principais entidades médicas brasileiras, o CFM está sozinho com esse posicionamento - que também é contrário a entidades internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Até o ano passado, a Associação Médica Brasileira (AMB) também defendia o uso desses medicamentos com base na autonomia. No entanto, em janeiro, com a mudança da diretoria, o posicionamento também passou a ser outro. 

Ao contrário do CFM, que tem o poder de regulamentar a profissão, a AMB funciona como uma entidade orientadora. É ela quem emite os títulos de especialistas nas áreas da Medicina legalizadas no Brasil e, por isso, é formada por 54 sociedades de especialidades. "Nós temos a obrigação constitucional estatuária de zelar pela ciência e pela boa assistência da população. O que nos orienta é o conhecimento vigente e digo vigente porque pode mudar", diz o presidente da AMB, César Eduardo Fernandes. "Então, nossa posição hoje, contrária à posição anterior, está assentada na literatura médica de melhor qualidade", explica. Para ele, no início de 2020, quando a pandemia começou, era "razoável" testar essas medicações. "Era desesperador não ter nada a ser feito. Mas ainda na metade do ano passado, o mundo inteiro abandonou. Essa é uma ideia brasileira, é igual jabuticaba", diz. 

Por conta disso, em março deste ano, a entidade criou o grupo Comitê Extraordinário de Monitoramento Covid-19 (CEM Covid), formado por representantes de 16 sociedades médicas no núcleo executivo. Semanalmente, o grupo se reúne para avaliar o cenário no país e os avanços científicos no mundo. 

"É um grupo de experts. Nossa linha ideológica é uma só: a melhor assistência médica da população e o melhor exercício da medicina. Não quer dizer que a gente é contra ou a favor do que o CFM faz. Não sou juiz do CFM, eles que respondam por suas ações", diz. 

Papel Mas outras associações já vinham apontando o problema há mais tempo. Em agosto do ano passado, a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD) divulgou um manifesto - até hoje disponível na primeira página de seu site oficial - defendendo o que chamou de uma medicina ética, responsável e baseada em evidências. 

Já no final de setembro passado, a entidade divulgou uma carta em que afirma que o CFM teria se tornado cúmplice do governo federal e se afastado do seu compromisso maior, que é de proteger e informar a população. “O conceito de ‘autonomia do médico’ foi deturpado, passando a ter a valoração amplificada e contrária à ciência, ao tempo que a ‘autonomia do  paciente’ passou a ser sumariamente omitida”, afirmam. Só na Bahia, mais de 350 médicos participam do grupo. 

O médico do trabalho Renan Araújo, membro da coordenação da ABMMD, foi um dos que participou da elaboração da nota. Para ele, o que o CFM chama defesa da autonomia médica, na verdade, não existe."O próprio Código de Ética Médica diz que a autonomia existe para o médico e para o paciente. O que deve haver é um equilíbrio entre a autonomia que o médico tem e a autonomia do paciente aceitar, de não aceitar, de saber o que está sendo tratado", explica.Segundo ele, não foi só a Prevent Senior que fez a prescrição generalizada dos tais 'kit covid'. Em outros estados, incluindo a Bahia, outros planos de saúde - em especial, aqueles com rede própria de atendimento - adotaram os mesmos medicamentos comprovadamente ineficazes. 

"Dizer que 'ah, não podemos deixar morrer' é um discurso falacioso. Se não tem medicamento, eu vou usar qualquer coisa? Autonomia médica não é para isso. É para dar direito ao médico, com base nas evidências científicas, de fazer o melhor para o seu paciente, de maneira individualizada", reforça Araújo. 

Por isso, a DPU também tem outra avaliação do que seria a autonomia médica. Para o órgão, trata-se de um poder que deve ser limitado pela ciência. No caso do CFM, contudo, o defensor regional de Direitos Humanos da DPU em São Paulo, João Paulo Dorini, afirma que a autarquia deveria estar preparada para mudar orientações de acordo com as descobertas científicas. "Eles fazem exatamente o contrário. Transformaram aquilo em dogma, daí o negacionismo. A ideia de autonomia deles é a mesma de quem defende a liberdade de expressão no sentido de ofender as pessoas ou atacar as instituições democráticas. É como se não tivesse nenhum limite". A ação da DPU, na verdade, é derivada de um procedimento que foi instaurado no final de abril, justamente com o objetivo de apurar por quais razões o CFM ainda mantinha o parecer 4, segundo o defensor regional."Eles nos responderam de forma bem sucinta que não iam mudar porque entendiam que a questão ainda não estava definida pela ciência e era algo que estava dentro da autonomia do CFM", lembra. 

Por isso, agora, apesar dos pedidos de indenização - que também incluem solicitações para famílias de vítimas da covid-19 que receberam kit covid e custeio de tratamento de pessoas que ficaram com sequelas - o objeto principal da ação é suspender a recomendação. No entanto, surgiram os fatos recentes, como o caso da Prevent Senior e de outros planos de saúde.

"Quem sofre mais é quem tem menos informação, que é a população mais pobre. Essa pessoa não pode escolher o médico que vai tratá-la e se ela recebe essa prescrição, vai fazer porque acredita que aquilo é benéfico para ela. Então, nesse sentido, o CFM ajudou a estimular esse tratamento", conclui. O CFM tem 15 dias para se manifestar na Justiça.

Conselho A Medicina não é a única profissão que é regida por um conselho. O mesmo acontece com arquitetos e urbanistas, médicos veterinários, engenheiros, psicólogos e por aí vai. Mas, no caso do CFM, suas atribuições constitucionais incluem fiscalizar e normatizar a prática da Medicina em todo o país. 

O CFM e os conselhos regionais - no caso da Bahia, o Cremeb - foram instituídos por uma lei federal de 1945, assinada pelo então presidente Getúlio Vargas. Mas foi em 1957, já no governo do presidente Juscelino Kubitschek, que foram regulamentados. 

Juntos, formam uma autarquia responsável por supervisionar a ética profissional médica em todo o país, atuando inclusive como julgadores e disciplinadores, segundo a lei. No caso dos conselhos regionais, entre outras atividades, fiscalizam o exercício da profissão, expedem carteiras profissionais e devem garantir "a honra e a independência" do CFM, além de promover o "perfeito desempenho técnico e moral da medicina". 

Só que o caminho adotado pelo CFM - e, por consequência, pelo Cremeb - também seria de omissão, segundo uma parte considerável da categoria médica. "O conselho sempre teve uma atuação muito equilibrada porque representa o conjunto de médicos. É claro que existiam pessoas de direita, de esquerda, mas era equilibrado. Tínhamos discussões com o objetivo de defender os médicos e a sociedade. Hoje, o conselho se filiou a um governo", diz a médica infectologista Ceuci Nunes, que atua diretamente no combate à pandemia por ser diretora do Instituto Couto Maia. Ex-conselheira do Cremeb por quase 20 anos, ela foi representante suplente da Bahia no CFM por dois mandatos. Segundo a infectologista, a falta de orientação adequada do órgão federal acabou provocando problemas tanto na atuação dos médicos quanto nas informações disponíveis para os pacientes. 

"A gente via um paciente chegar e a família fazendo pressão para usar medicamentos que não têm eficácia. Não tenha dúvida que isso causa confusão nos profissionais. Isso aconteceu nos consultórios, nos hospitais. Era uma pressão nos médicos que não concordam", diz. 

Para Ceuci, o parecer do CFM é alinhado ao que preconizava o governo federal. "Eu não tenho a menor dúvida do negacionismo. O CFM se prestou a dar um ar de ciência a uma atitude do governo que foi completamente anticiência", avalia. 

Evidências  Antes mesmo que pesquisas comprovassem a ineficácia desses medicamentos, alguns médicos já eram contrários à prescrição, como o cardiologista e eletrofisiologista José Alencar, autor do Manual de Medicina Baseada em Evidências (Sanar) coordenador do curso de pós-graduação da Sanar. 

"O CFM, desde aquela época, parecia muito omisso quando não se posicionava ou quando se colocava em favor de uma autonomia médica entre aspas, porque não é assim. Não se pode confundir a autonomia da profissão com a defesa velada de uma conduta comprovadamente ineficaz", explica. 

Segundo ele, há um movimento de mudança na Medicina que começou há cerca de 30 anos. Desde então, a tendência é se basear em evidências clínicas."Há, no meio delas, evidências boas e más, seja porque não conseguiram fazer uma pesquisa de qualidade, seja porque estão incluindo vieses de propósito ou por fraude. A medicina baseada em evidências tem que olhar a metodologia, ver se convence e aí a gente vai levar o melhor conceito", acrescenta. Para Alencar, uma situação como essa no CFM é inédita, quando se fala em medicina baseada em evidências. "E é muito triste. Se o conselho se posicionasse, seria um órgão a mais para falar contra. Mas, do jeito que está, acaba sendo um órgão citado pelos negacionistas. Isso acaba fortalecendo a narrativa deles". 

O presidente da AMB, César Eduardo Fernandes, também explica a diferença entre as pesquisas científicas. Como em outras áreas de conhecimento, na Medicina, existem periódicos de alto impacto que são revisados por partes de alto conhecimento científico. Nesses periódicos, que são mais criteriosos, apenas as melhores pesquisas são publicadas. É o caso de alguns famosos, como o New England Journal of Medicine e a revista The Lancet. 

"Nenhuma dessas revistas de melhor impacto publicou algum artigo que pudesse dar credibilidade a essas medicações. Além disso nenhuma agência regulatória séria no mundo fez isso. Nem a nossa, a Anvisa, que é motivo de orgulho para nós", diz.

Jovens médicos Para os médicos mais jovens, o CFM deveria ser a referência na profissão. Mas não é o que tem acontecido, como explica a médica Rhanna Santos, 29 anos, que se formou em 2019. "O CFM teve e está tendo uma postura omissa, que não representa muitos médicos, como os da minha geração e os que vieram depois de mim. A Medicina e o profissional médico são regidos por princípios que vão além da autonomia, como o da não maleficência e o da beneficência. Se eu não posso fazer bem ao paciente, mal eu não vou fazer. A autonomia médica não deve passar por cima disso", defende. Na universidade, os cursos contam com disciplinas de metodologia científica. No entanto, mesmo após a formatura, ela explica que não é incomum que os colegas sintam dificuldade em fazer avaliações no dia a dia. "Mas quando a gente toma uma conduta, ela nunca é baseada em opinião ou gosto pessoal. Naquele momento, é a profissional respaldada em diretrizes baseadas em artigos de alta evidência. Não pode ser uma coisa tirada da nossa cabeça". 

O médico José William, 27, que concluiu a graduação em julho, em meio à pandemia, acredita que os colegas estão divididos. "A ciência não é neutra, mas existem coisas na ciência que são tão qualificadas, como que lockdown e vacina eram a solução do problema, que difundir ideias como tratamento precoce, cloroquina e antivermífugo sempre pareceu surreal para a comunidade científica mais séria", pondera. 

O saldo, na avaliação dele, é negativo para os médicos enquanto classe. "O CFM tem que estar ao lado dos médicos, não do governo A ou B. É muito mais interessante ter um conselho mais médico e menos partidário do que qualquer outra coisa", reforça. 

Politização É comum escutar, de ambos os lados, que a discussão sobre a pandemia foi politizada entre os próprios médicos. Nos últimos dias, a situação ganhou novas nuances com a divulgação de vídeos que viralizaram nas redes sociais por declarações da diretoria do CFM. Em um deles, divulgado pelo portal Metrópoles, o presidente do CFM, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, afirma que a autarquia apoia o governo federal. 

"Então, existe, sim, o apoio do Conselho Federal de Medicina (CFM) ao Ministério da Saúde, ao presidente, porque hoje nós temos diálogo”, disse, na ocasião. O registro foi feito em uma live com um representante do Conselho Regional de Medicina de Goiás, no dia 7 de maio de 2020. 

Já na semana passada, o The Intercept Brasil divulgou trechos de uma gravação em que o vice-presidente do CFM, Emmanuel Fortes, diz que o risco de questionamentos judiciais para quem prescreve cloroquina a pacientes com covid seria menor do que para quem não prescreve. “Se houver problemas, é necessário que haja uma relação de causa e efeito, é preciso que quem se queixa venha a encontrar provas de que foi a prescrição medicamentosa que gerou dano. Agora quem não prescreve, a situação fica muito mais complexa porque baixa no prontuário e vê-se que a pessoa não tomou providências preliminarmente e pode ser acionada judicialmente”, disse, em 28 de junho de 2020. Mas ver a política mais presente nos debates médicos não é algo que começou agora. Para alguns, é possível estabelecer a criação do programa Mais Médicos, em 2013, como um dos marcos dessa mudança de rota. Naquela época, boa parte da classe médica se posicionou de forma contrária ao programa que previa a criação de vagas para médicos em cidades do interior ou em postos das grandes cidades que não costumavam atrair a categoria. 

Naquele ano, houve dezenas de manifestações em diferentes cidades do país, incluindo Salvador - a imprensa chegou a batizar o movimento como Revolta do Jaleco. No entanto, para o médico do trabalho Renan Araújo, a criação do Mais Médicos foi um “pretexto”. 

"Havia uma parcela de médicos que se aproveitou disso para dar essa guinada, porque o programa foi criado para médicos brasileiros. Só que não houve o preenchimento das vagas por brasileiros, que era a prioridade. Depois, passaram para médicos estrangeiros em geral e só depois os cubanos. Quando falou em cubanos, associaram a comunismo, todas essas coisas, e fortaleceram pensamentos conservadores, elitistas", lembra. 

Por isso, ele critica também a afirmação de que o Cremeb não se envolveria em uma "situação que foi politizada". Essa declaração foi feita pelo então vice-presidente da entidade, Julio Braga, à imprensa baiana, no início deste ano. 

 "Nossa posição não é politizada. Adoraríamos que houvesse um medicamento para covid como esse que está sendo criado agora. Mas não existia. Nós defendemos máscara, distanciamento social, desenvolvimento de vacinas, ou seja, o que o governo negligenciou", afirma. 

Para a médica Rhanna Santos, o CFM tem importantes iniciativas, inclusive de capacitação de profissionais. No entanto, acredita que a autarquia deveria se desligar de interesses políticos. 

"Lógico que existe uma pessoa por trás do conselheiro e do médico. Essa pessoa é um ser pensante que tem preferências políticas, mas, a partir do momento que está representando seja o CFM ou o Cremeb, ela está ali por todos os médicos. Interesses pessoais não tem que estar em pauta", opina.

Conselho Federal de Medicina afirma que não possui vínculos ideológicos

O Conselho Federal de Medicina (CFM), através da assessoria, afirmou que, enquanto autarquia federal, não possui vínculos ideológicos, políticos e partidários. "Ao longo de sua história, tem mantido uma relação construtiva de respeito institucional com os diferentes governos, sempre colocando-se à disposição para contribuir com as políticas públicas de saúde", diz a entidade.

O CFM reforçou que o parecer 4/2020, com a autonomia do médico e do paciente, mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Segundo o conselho, esses preceitos são garantias constitucionais invioláveis, que não poderiam ser desrespeitadas no caso de doença sem tratamento farmacológico reconhecido, como a covid-19. Além disso, a entidade reforçou que as competências legais do CFM permitem o uso de medicações 'off label' - ou seja, quando um remédio é utilizado para algo diferente do que está descrito na bula."Lembrando que a autonomia médica apresenta limites, dentro da lei e da ética. A conduta estabelecida pelo médico deve perseguir a beneficência do paciente", acrescentam.Quanto ao caso da Prevent Senior, o CFM informou que qualquer denúncia contra médicos no exercício da função deve ser apurada inicialmente pelo Conselho Regional de Medicina, no estado em que ocorreu o atendimento (no caso, o de São Paulo). O CRM local deve abrir um procedimento disciplinar e dar oportunidade ao contraditório e ampla defesa aos envolvidos. "Como instância de julgamento em grau de recurso, o CFM não possui competência para apreciar questões éticas de forma originária, sob pena de nulidade do procedimento administrativo", completam.

Além disso, em uma nota divulgada no dia 6 de outubro, o presidente do CFM, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, se posicionou sobre a inclusão de seu nome entre os investigados da CPI da Covid, a qual considera que teria sido transformada em um "palco midiático para embates políticos e ideológicos". 

Ribeiro afirmou que desde o início da CPI, se colocou à disposição dos parlamentares, que teriam ignorado. "Com isso, os membros da CPI deixaram clara sua opção de dar palanque aqueles que mantém um discurso alinhado com determinada visão, distante da realidade enfrentada pelos médicos na linha de frente contra a covid-19, e não dar voz ao Conselho Federal de Medicina (CFM) como representante daqueles que têm dado o máximo na luta contra essa doença, às vezes com o sacrifício de sua própria saúde ou vida", diz, na nota, em que volta a reafirmar a autonomia do médico.

Cremeb Apesar do foco das críticas de muitos médicos ser o Conselho Federal de Medicina (CFM), para muitos deles, o Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb) tem agido de maneira alinhada. A posição do Cremeb, assim como a do conselho federal, é de defender a autonomia do médico com medicamentos como a cloroquina e a ivermectina. 

No entanto, o presidente do Cremeb, o conselheiro Otávio Marambaia, diz que vê as críticas "com preocupação". Segundo ele, essa não é a atuação da entidade."Se nós formos compilar as manifestações públicas que o Cremeb deu desde o início da pandemia, vamos ver que ele sempre esteve atento e se manifestou a respeito dos problemas que surgiam na pandemia", diz. Essas manifestações, de acordo com ele, nunca incluíram atos políticos-partidários. "Com relação à posição do CFM, em nenhum momento ele orientou qualquer tipo de prescrição. Há um equívoco ao dizer que o CFM liberou essa ou aquela medicação. Desafio qualquer pessoa a dizer que o tratamento precoce, kit covid ou qualquer outra coisa foi recomendada pelo CFM", afirma, ressaltando que a ação da entidade federal seria para reforçar que os médicos devem usar todos os meios disponíveis para a promoção de saúde e a prevenção diagnóstica. 

Para Marambaia, a autonomia médica também não é uma novidade, como acredita que parece estar sendo debatida. No entanto, ele define a Medicina como uma prática de meios; não de fins. Portanto, os médicos são responsáveis por qualquer ato que decidam fazer. Ele cita, como exemplos, uma nota do dia 22 de julho de 2020, em que o Cremeb alertou para a inadequação da prescrição pública ou em massa de medicamentos. "Estávamos vendo acontecer nas redes sociais, por exemplo. Prescrever indiscriminadamente numa rede social não contempla a individualidade biológica de cada paciente e a monitoração de efeitos adversos. Orientação em massa ignora também a anamnese", diz, referindo-se à entrevista que médicos realizam com pacientes nas consultas. 

No entanto, ele ressalta que a prescrição ‘off label’ não é uma prática nova. Nesses casos, os profissionais se responsabilizam. "O conselho está aberto e tem recebido denúncias feitas por pacientes, que estão sendo apuradas como todas que chegam aqui. O conselho não está a favor ou contra nenhuma medicação. A questão é: se estou fazendo, estou acompanhando meu paciente? Tenho que ter o consentimento dele", argumenta, ressaltando que a autonomia do médico não é absoluta. "Infelizmente, o momento político e a politização infelizmente nos colocam diante de discussões sobre uma coisa que já está clara". 

A medicina, de acordo com o presidente do Cremeb, é na verdade baseada em probabilidade. Ou seja: um estudo pode identificar qual é o percentual de pacientes que tiveram determinado resultado com alguma droga, por exemplo. Assim, médicos devem continuar com a observação, após a prescrição."Chama-se farmacovigilância. Quando muitos profissionais prescrevem determinada medicação, podem apontar danos ou efeitos que não foram vistos no estudo. As pessoas precisam entender que trabalho científico não é algo que está escrito no livro sagrado. A ciência não é algo sagrado. Costumo dizer que é uma religião nova todo dia, porque amanhã pode ser outra coisa. Por isso, conclamo as pessoas que estão prescrevendo medicações como se tivessem descoberto a pólvora que vejam isso", pondera. Ainda assim, ele diz que o Cremeb não poderia recomendar que um remédio não seja usado - essa competência, na avaliação dele, seria apenas da Anvisa. "Seria um desrespeito à autonomia do médico. O que o conselho vai avaliar é se aquele médico seguiu os preceitos estabelecidos para o uso daquela droga. Se ele fez bem, vai ser avaliado. Se causou algum malefício, por ignorância, imperícia ou omissão, vai ser responsabilizado por isso", diz.