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Mulher-centopeia: professora cria equipamento que alivia dores e dá prazer


 

Instrutora de pilates radicada na Bahia, Isabela Moody criou 'bicho' inovador que faz milagre na coluna, no ombro...

  • Naiana Ribeiro

Publicado em 07/07/2019 às 05:30:00
Atualizado em 20/04/2023 às 00:00:06
. Crédito: Foto: Betto Jr.

Quando tinha em torno de 27 anos, Isabela Moody, 56 anos, sofria com lesão por esforço repetitivo. A professora de pilates e bacharel em Artes Plásticas chegou a ter mais de 30 torcicolos em pouco dias. Como passava muito tempo sentada, ela também sentia uma forte dor ciática. Foi nessa época que a carioca radicada na Bahia passou a usar bolas de tênis diariamente para aliviar dores, muito antes de pensar em praticar a atividade física criada por Joseph Pilates (1883 - 1967).

Não à toa, a paixão pelo objeto está espalhada por todos os cantos de sua casa - penduradas nas paredes, em móveis que ela criou - e também ficou eternizada na Centopeia Centípede, invenção que desenvolve, alinha e estimula o corpo, promovendo alongamento, equilíbrio, força, alívio e prazer. A Centopeia Centípede (Foto: Marina Silva/CORREIO) Visualmente, o equipamento lembra uma coluna vertebral. Tem muita gente que enxerga também o próprio ‘bicho’ homônimo, que já ganhou vida, com patente internacional e milhares de exemplares pelo mundo - 3,5 mil foram vendidos nos últimos 18 meses.

O quase animal nasceu na Bahia, em 2014, terra na qual Isabela vive desde os 11 anos. Assim como o inseto, que tem entre 30 e 300 perninhas, o instrumento tem cerca de 30 'patas', formadas por 15 pares de bolas de tênis. (Foto: Marina Silva/CORREIO) Diferentemente da lacraia, espécie cuja picada dói e faz inchar, o bicho de Isabela pode até provocar dor, mas, na verdade, promove aquele incômodo gostoso, seguido de alívio, prazer em qualquer área do corpo.“É uma escultura sensorial que promove automassagem e movimento ao mesmo tempo. É um brinquedo, um equipamento, um acessório e um instrumento irresistível de autocuidado. Muitos usam ela sozinha, outros com equipamentos do pilates, da academia, com cadeiras, com o assento do carro, etc. Ela casa com muita coisa. É um bicho que cuida do dono”, resume Isabela. (Foto: Marina Silva/CORREIO) Hoje, o acessório contribui diariamente para o bem-estar de várias pessoas. E era essa a ideia da genitora quando começou a ensinar pilates: ela queria ajudar as pessoas para além da sala de aula e, por isso, começou a fazer objetos, equipamentos e mobiliários proativos para melhorar posturas e promover o bem-estar.“Sempre tive a preocupação de ajudar alunos a reconhecer objetos que não fazem bem e que podem nos machucar em cinco minutos. É o caso de sapatos, cadeiras, colchões... Comecei a focar mais nisso”, lembra Isabela. Isabela e suas centopeias (Foto: Betto Jr.) Sua primeira invenção foi a adaptação de uma cadeira criada pelo próprio Pilates, deixando-a mais confortável e ergonômica com EVAs, um acolchoamento de bolas e uma órtese. Já os primeiros protótipos de acolchoamentos com bolinhas, ela fez em 2006, quando passou um tempo na Nova Zelândia.

Depois da cadeira, criou colchões, entre outros móveis e aparelhos sensoriais. Em 2014, já de volta à Bahia, Isabela Moody materializou a Centopeia.“Foi uma grata surpresa da vida. Estava tentando acolchoar uma cadeira com bolas encapsuladas, aí a ideia cristalizou na minha cabeça e eu montei. Pensei em ajudar meus alunos a viver melhor, e queria também criar algo inovador e irresistível: que qualquer pessoa olhasse e quisesse se movimentar. As pessoas vinham aqui, deitavam, sentavam e me encomendavam”, conta Moody.Ela ressalta que a divulgação da invenção até hoje é no ‘boca a boca’: “Não faço marketing. O contato é via WhatsApp, Facebook, email e telefone”.

A criatura é formada por sacos de meia, que têm duas bolas cada, prendedores e uma trança. O ‘bicho do bem’ tem como benefícios mais aparentes o trabalho com a coluna e a liberação da tensão nos pontos gatilho.“Só de você deitar nela e alinhar a coluna, fazendo movimentos intuitivos, já relaxa e libera espaço entre as vertebras. Esse movimento descomprime nervos, reorganiza os membros e ajuda a movimentar o líquido cefalorraquidiano (fluido do cérebro ligado ao sistema nervoso)”, pontua Isabela. (Foto: Marina Silva/CORREIO) A liberação do estresse, aliás, é outro benefício para quem é ‘picado’ pela Centopeia. Ela funciona como a liberação miofascial, técnica de massagem que aplica pressão em alguns pontos do corpo. Ajuda a relaxar, alongando os músculos para que haja maior liberdade entre eles e a fáscia, tecidos conjuntivos presentes em todo o corpo.“Tem gente que geme só de olhar para ela”, revela.A Centopeia é recomendada por fisioterapeutas e professores para relaxar e pode ser usada por pessoas de todas as idades. O cuidado deve ser maior apenas para quem osteoporose. “Proporciona um feedback corporal que facilita a pessoa perceber seu corpo, os locais de tensão e bloqueio. Ajuda a identificar, tratar e desbloquear isso tudo, aliviando a tensão e estresse excessivo”, garante o psicólogo e professor de pilares Daniel Becker, 54.

Ele, que também é ator e fez doutorado em Artes Cênicas com foco na Educação Somática, usa a Centopeia para si e como suporte para exercícios com seus alunos.“As bolinhas em contato com o corpo produzem um desbloqueio de energia através da estimulação dos pontos gatilhos”, acrescenta Daniel.Quem também é amante declarada do ‘bicho’ é a instrutora de pilates baiana Juliana Rocha, 38. “O diferencial é que pode atingir pontos e ajudar as pessoas em dores específicas. Só de mexer com a fáscia (tecido conectivo) tem uma eficiência incrível”, afirma ela, que já brincava com o animal há alguns anos e fez o workshop há dois. (Foto: Marina Silva/CORREIO) Hoje, Juliana tem três Centopeias em seu estúdio, o Biocentrum, que fica no Rio Vermelho, e faz questão de incluí-las nos exercícios.“Tem vezes que dou aula completa só com ela e trabalho perna, braço, abdômen, coluna, alongamento. Também uso como acessório, com aparelhos como trapézio, cadeira, etc”, conta Juliana.Assista Juliana Rocha ensinando alguns exercícios na Centopeia:

A Centopeia funciona em associação com qualquer prática que envolve movimento, como yoga, dança e até natação.“A multiplicidade de exercícios me surpreende. Dá para deitar nela de barriga pra cima, de barriga pra baixo, de lado... Dá para fazer séries sentado, deitado, encostado na parede. Podemos trabalhar a pele toda”, explica Juliana. (Foto: Marina Silva/CORREIO) Uma das coisas que ela mais gosta na ferramenta é o prazer:“Libera endorfina e proporciona uma sensação maravilhosa. É muito funcional e como objeto estético também é lindo”, afirma Juliana. (Foto: Marina Silva/CORREIO) Colorida e lúdica, a Centopeia também tira a seriedade e rigidez de certas atividades físicas, estimulando a criatividade.“Só de mexer com ela você já vai intuindo movimentos naturais do corpo. Isso empodera as pessoas. Sempre tem algo de pessoal naquilo”, acredita a idealizadora Isabela.As utilidades e benefícios da cria foram sendo descobertos aos poucos, e ela sempre surpreende. Mas o fato é que a vida da professora mudou completamente com a chegada do ‘bicho’. Hoje ela dedica grande parte do seu tempo à Centopeia e a workshops sobre ela. “As bolas, as meias costuradas e os panos da trança chegam aqui e a gente monta. A fábrica invadiu minha casa”, revela ela, que pretende transformar sua garagem em ateliê.

A autodenominada ‘falsa baiana’ atribui sua disposição à invenção.“Ter uma coluna sadia é sinônimo de muita vitalidade. Eu não paro. Acordo todo dia e quero correr, pular, quero realizar e me movimentar nessa Bahia linda”, explica Isabela.Processo de produção Os tecidos da trança, que é adaptada da linha Fletcher – já usada no pilates - são feitos pela Associação União de Mulheres do Monte Alegre (AUMMA) e Associação de Mulheres Empreendedoras da Comunidade do Caritá (AME Caritá), que mandam o tecido do município de Jeremoabo, no Nordeste da Bahia, para Salvador. Aqui, costureiras preparam a alça e deixam o pano pré-pronto para a trança. Panos como jacquard, lycra e suplex light também são costurados e formam as meias que envolvem as bolas de tênis.

Essas, por sua vez, vêm de todos lugares do mundo: de clubes, professores de tênis, alunos, atletas, etc.“Uso bolas de segunda mão, mas só compro marcas boas, como Wilson e Babolat, que vão durar uns 30 anos no mínimo. Seria mais fácil comprar novas, mas uma latinha custa R$ 30 ou R$ 40. Onde quer que eu vá, faço contatos. Também tenho viajado para comprar tecidos, encontrar com professores de tênis, clubes, etc”, revela. (Foto: Marina Silva/CORREIO) Com todos os materiais pré-prontos, a montagem acontece na casa de Isabela. O processo pode demorar de uma hora e meia a cinco dias.“Essa é a parte mais difícil do trabalho: trançar a Centopeia direito. Já tentei treinar muita gente, mas até agora só três pessoas aprenderam. Eu refaço várias vezes, mas só entrego quando está 100%”, garante Isabela.A odisseia pode demorar mais de um mês. Com isso, o produto custa hoje, no Brasil, R$ 520. “Muita gente diz que é caro, mas quando conto o processo tem gente que fala que vai me dar mais dinheiro”, brinca Isabela. “Quando você dilui esse valor pelo quanto ajuda na sua saúde, vale muito a pena”, completa.

Para que ela tivesse uma folga, o item teria que custar pelo menos R$ 790, garante a empresária:“Tive prejuízo durante dois anos e meio. Hoje faço pelo mínimo e dá pra dividir em quatro vezes. Parte do meu pagamento é saber que estou fazendo bem para a humanidade. Até cachorros e gatos brincam nelas”.De sua receita, cerca de 25% vai para o transporte dos materiais. Uma parcela do valor também cobre taxas e impostos obrigatórios. “A Centopeia é uma sacada genial. É uma invenção muito inteligente. Não gosto de dizer que é caro, porque é um investimento”, avalia a instrutora Juliana. Ela lembra que nem todo mundo precisa ter uma em casa – uma boa opção pode ser praticar atividade física em algum lugar que já utilize o instrumento.

Como o produto é quase todo feito à mão, a produção em série ainda é um desafio.“Não posso anunciar demais, pois não consigo atender. Estou nesse ponto de aumentar a produção. Também quero criar uma espécie de ‘pet shop’ das Centopeias”, antecipa. A ideia é que seja possível repaginar o bicho, como se o levasse em um salão de beleza (Foto: Marina Silva/CORREIO) Outra meta é deixar rastros no mundo acadêmico. Por isso, desde 2017 a criadora faz uma segunda graduação: fisioterapia, na Universidade Católica do Salvador (Ucsal).“Se eu entender melhor o corpo humano e seus movimentos, creio que vou contribuir ainda mais. Quero desenvolver repertórios mais específicos e estou interessada em produzir pesquisa, evidências”, revela.Depois de se formar nesse curso, Isabela pensa em continuar na área de ergonomia, além de trabalhar com próteses, órteses, objetos e mobiliário. Enquanto isso, a agenda da professora, empresária e agora aluna continua lotada. Ela ainda quer voltar a escrever roteiros para TV e séries, arranjou tempo para apresentar sua cria em duas conferências e vai viajar para a Nova Zelândia, na Oceania, no segundo semestre.“Tá intenso, mas estou muito entusiasmada. A sensação que tenho é que posso passar o resto da minha vida me dedicando a isso”, acredita Isabela.Olha mais esse exercício com a centopeia:

Paixão por bolas O propósito fica ainda mais evidente ao olhar para a casa de Isabela, um imóvel de cor laranja - que mais parece cenário de um filme - construído por ela e duas arquitetas no bairro de Patamares. Foi lá onde ela recebeu a reportagem do CORREIO.

Cercada por várias árvores e até uma mini ponte – que é como a porta de entrada para um universo paralelo - sua sala é cheia de bolas de tênis. Centenas delas estão espalhadas por todos os cantos: soltas em baldes, formando colchões, assentos e até compondo a decoração. Muitas formam as tais Centopeias.

Quando foi apresentada às bolas de tênis para automassagem, Isabela trabalhava como roteirista de televisão no Rio de Janeiro e ainda nem cogitava praticar pilates. Ela trabalhou por quase 15 anos na área de Comunicação e se apaixonou pela prática na Bahia, quando teve a sorte de ser vizinha de porta de Alice Becker, precursora do método no Brasil, no bairro da Federação. Foi a ex-integrante do Balé do Teatro Castro Alves, inclusive, quem trouxe a prática para a América Latina, no início dos anos 1990. Alice foi ponto chave para que Isabela se tornasse instrutora.

Olha um exercício para trabalhar extensão, mobilidade de ombro e quadril com a centopeia:

“Éramos muito amigas e o primeiro estúdio de pilates com equipamentos do Brasil foi nesse prédio. Fui sortuda porque ela me deu a chave e eu ia na hora que dava. Fazia os exercícios que meu corpo pedia e ia adaptando”, lembra.Assim, praticou nove anos de pilates de forma despretensiosa e criou um repertório de movimento nunca visto antes, o Coluna Viva.

Já no vídeo abaixo, a professora Alice Becker ensina a fazer uma ponte com a Centopeia

A carioca-abaianada resolveu fazer a formação e se tornou professora. “Quando você faz algo de bom pelas pessoas e elas dizem o quanto estão bem, você fica num estado de prana (energia vital), é um alimento impressionante”, acredita.

Exercícios com a Centopeia (por Juliana Rocha)

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