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Bandidos 'poderiam ter outra arma na mão, o instrumento', diz aluna do Neojiba


 

Jovens contam como suas vidas foram transformadas pelo Neojiba, programa que comemora dez anos dedicados à música

  • Laura Fernades

Publicado em 25/04/2017 às 06:15:00
Atualizado em 17/04/2023 às 00:55:07

Nos últimos dez anos, ficou cada vez mais comum encontrar jovens estudantes de música desfilando seus instrumentos por bairros populares de Salvador como Nordeste de Amaralina, Bairro da Paz e Pirajá, além de outros municípios como Simões Filho, que já chegou a figurar nas estatísticas das cidades mais violentas do Brasil.

A estudante e flautista Talita da Luz, 18 anos, diz que sempre que aparece alguém com trompete, oboé e outros instrumentos pelo Bairro da Paz, onde mora, é motivo de orgulho. “Os vizinhos ficam admirados!”, conta, com um largo sorriso. “O Neojiba chegou lá no bairro como um presente pra comunidade”, agradece Talita, ao citar o programa do qual faz parte e que este ano completa dez anos: os Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia - ou Neojiba.Priscila e Talita, que são irmãs, e Daniel começaram como alunos, hoje são monitores e tocam na OCA(Foto: Arisson Marinho)

Monitora do Núcleo de Prática Orquestral e Coral (NPO), braço do Neojiba no Bairro da Paz, criado em 2013, Talita começou como aluna de flauta e hoje dá aula para os colegas, além de tocar na Orquestra Castro Alves (OCA). Uma das formações de destaque do programa, a OCA se apresenta nesta terça (25) em um dos concertos comemorativos dos dez anos, às 19h30, no Teatro Castro Alves, juntamente com a Orquestra Juvenil da Bahia e o Coro Juvenil do Neojiba.

Por conta da experiência com o projeto, Talita garante que vai prestar o vestibular para Licenciatura em Música e diz que, assim como ela, muitos dos seus colegas sonham com isso. “O Neojiba mudou nosso bairro, porque tem o objetivo de tirar crianças e adolescentes da rua e essa é uma boa forma”, destaca Talita, que não acha seu bairro violento, apesar de lembrar de um fato marcante.

Segundo a flautista, faz dois anos que uma criança morreu na porta de casa, vítima de bala perdida. “É trágico. A criança não pôde nem escolher o que queria ser... Em vez dessas pessoas que trocaram tiro com a polícia estarem na rua, poderiam estar tocando com outra arma na mão, o instrumento”, reflete Talita, que tem uma irmã no Neojiba, Priscila da Luz, 20.

As duas descobriram o NPO Bairro da Paz através do irmão, que recebeu um panfleto no cursinho e levou para casa. Interessada em música, porque tocava violão, Priscila correu para se inscrever e acabou escolhendo o oboé.Priscila da Luz, 20, integra a Orquestra Castro Alves e faz monitoria no NPO Bairro da Paz(Foto: Arissinho Marinho/CORREIO)

“Antigamente, quando não era do Neojiba, eu ficava em casa e só ajudava a arrumar as coisas. Mas agora saímos para crescer na música”, conta Priscila, que mora com a mãe, a vendedora de acarajé Maria José da Luz, 54, e o pai, o pedreiro Januário Alves, 62.

Assim como a irmã, Priscila ganha bolsa para atuar como monitora no NPO Bairro da Paz e para tocar na OCA. “Aprendi que, assim como na música, nós podemos consertar o erro, na vida também podemos. Fui transformada pelo Neojiba, porque o programa me abriu possibilidades de crescer na música e na vida”, comemora.

AlcanceResponsável por atender mais de  4 mil crianças e jovens, de 4 a 29 anos, o Neojiba é vinculado à Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social. Composto por 12 núcleos em cinco municípios baianos, o programa foi criado pelo maestro e pianista Ricardo Castro, em 2007, e é inspirado no El Sistema, modelo didático-musical criado há 40 anos na Venezuela. Atualmente, dos 1,6 mil integrantes do Neojiba, 80% têm entre 4 e 17 anos, 85% se autodeclararam pardos ou negros e 71% são estudantes do ensino fundamental I e II. Já 74% das famílias possuem renda mensal de até dois salários mínimos e 45% delas recebem benefícios socioassistenciais.

‘TODO SER HUMANO PRECISA SE SENTIR NECESSÁRIO’ DIZ MAESTRO RICARDO CASTRO“O que a gente observa é que, com todas as dificuldades que esse público tem, a música faz com que possa se centrar e ter oportunidade de fazer a diferença, transpor a condição social e ir além”, destaca a assistente social do Neojiba Joana Angélica Rocha, 41. “Essa coisa de se inserir no meio social, sair da sua comunidade, é importante”, completa.Morador de Paripe, o estudante Daniel Silva, 15 anos, conta que a música muda a pessoa em vários aspectos. “No comportamento, te motiva a estudar, abre sua mente para pensar mais. É meio difícil de explicar, porque música você sente e faz”, resume o jovem que fez parte do núcleo Federação e integra a OCA.Morador de Paripe, Daniel Silva, 15, integra a Orquestra Castro Alves e faz monitoria no NPO Federação(Foto: Arisson Marinho/CORREIO)O estudante Márcio Levi Gomes, 17, é um bom exemplo de mudança. “Eu era rebelde e o Neojiba me fez  mudar muito”, garante o jovem, que integra o núcleo que funciona no Centro Educacional Santo Antônio (Cesa), em Simões Filho. Violinista e apaixonado por regência, Levi entrou no Neojiba em 2013 e hoje faz monitoria em regência, além de auxiliar as aulas de violino.“Pela forma que o Neojiba me transformou, ele pode transformar outros jovens. O Neojiba pede muita responsabilidade, muito compromisso. Tudo o que passei no programa foi me preparando para a vida: saber me colocar, saber respeitar... Ele traz um ensino técnico, mas também ensino da vida, social”, acredita.A mãe de Levi, a dona de casa Eumárcia Gomes, 47, grava todas as apresentações do filho, cheia de orgulho. Mostrou para todo mundo? “Claro! Botei no ‘zap’” gargalhou a mãe coruja. “O Neojiba, em vez de colocar uma arma na mão de um adolescente, coloca o instrumento que ele vê na tevê e admira, mas não tem acesso. Acaba realizando um sonho, como aconteceu com meu filho, que começou como aluno e hoje é instrutor”, finaliza.