Assine

Protegida ou sagrada: por que a Baía de Todos-os-Santos não foi atingida pelo óleo?


 

Nesta sexta-feira (1º), a chegada dos portugueses à baía completa 518 anos; conheça a BTS

  • Thais Borges

Publicado em 01/11/2019 às 05:10:00
Atualizado em 20/04/2023 às 11:16:06
. Crédito: Sora Maia

No fim, ciência e fé chegaram praticamente a um consenso: a Baía de Todos-os-Santos (BTS) é protegida. Seja por ter uma entrada mais estreita, que restringe a comunicação com o oceano, ali entre o Farol da Barra e a Ilha de Itaparica, seja por correntes de maré vazante mais fortes do que as de maré enchente. 

Pela calmaria de suas águas ou pelo sobrenatural que só as religiões tentam explicar, a BTS é diferente. O óleo que atinge o litoral do Nordeste há dois meses e que chegou a praias de 27 municípios baianos é emblemático para entender essas características físicas. Por ali, na baía, foi como se passasse só de raspão. 

Só houve registro da substância nas duas extremidades da BTS: a praia do Farol da Barra e um trecho da Ilha de Itaparica, na outra ponta. “Ela é protegida, abrigada por todos os santos”, brinca o diretor de recursos hídricos e monitoramento ambiental do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), Eduardo Topázio. “A BTS tem um padrão de corrente que depende muito de região para região”, diz. Nesta sexta-feira (1), quando se completam 518 anos da chegada dos navegadores portugueses, a Baía de Todos-os-Santos ainda desperta questionamentos, reflexões e mistérios. É tão importante que, em 2014, foi declarada capital da Amazônia Azul por entidades como a Associação Comercial da Bahia (ACB). 

Uma coisa é certa: em 1501, na ocasião em que uma expedição liderada pelo português Gaspar de Lemos atracou por aqui no Dia de Todos os Santos para mapear as terras descobertas no ano anterior, por Pedro Álvares Cabral, seria difícil imaginar que, séculos depois, a BTS seria uma das principais forças econômicas, sociais e ambientais do estado.  Foto: Sora Maia “A BTS é bem especial por vários aspectos. O primeiro é que os portugueses chegaram ao Brasil e constituíram Salvador como primeira capital por meio dela. A partir daí, veio todo o processo de colonização”, explica a oceanógrafa Vanessa Hatje, professora do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e uma das coordenadoras do Projeto Baía de Todos-os-Santos – Instituto Kirimurê. 

Fluxo das águas De acordo com o geógrafo Guilherme Lessa, professor de Oceanografia da Ufba, as marés têm forte influência na circulação da água nas baías brasileiras, já que a maioria delas tem canais de entrada desimpedidos. Na BTS, as correntes de maré vazante tendem a ser mais fortes que as de maré enchente. Na entrada da baía, podem alcaçar até 2m/s (quase 8 km/h).  

“Um detalhe importante da circulação de água nas baías é que, por serem áreas estuarinas, onde a concentração de sal é diluída, existem lentos fluxos de água causados por diferenças de densidade da água ao longo da baía (água mais leve para dentro da BTS)”, explica. 

É a diferença de densidade das águas, segundo o professor, que faz com que fluxos de vazante fiquem mais fortes que o normal na superfície. Os fluxos de enchente, por sua vez, ganham mais força do que o esperado junto ao fundo. “Ao longo de vários dias, esta diferença de velocidades entre superfície e fundo acaba por empurrar o que está próximo à superfície em direção ao oceano e o que está próximo ao fundo para dentro da BTS.  Essa seria uma razão para o óleo não ter entrado na BTS”, completa Lessa. Para Eduardo Topázio, do Inema, a natureza propiciou condições para que o óleo não avançasse. “Poderia ter entrado, mas foi uma circunstância de momento distante da corrente. Esse óleo, na verdade, chegou fragmentado. Por isso, as condições ‘extra-baía’ terminaram favorecendo”. 

Não é só o óleo. O que sai do emissário submarino de Salvador, que deságua no Rio Vermelho, não chega à BTS. O Inema já tinha feito simulações teóricas, antes do óleo. Se um plástico fosse jogado na praia, em frente à BTS, mas fora dela, demoraria mais de 24 horas para chegar ao Porto da Barra. Poderia levar até seis dias para chegar ao meio da baía, se não fosse retirado até lá. 

O impacto, se houvesse esse contato, seria até complexo mensurar. O biólogo Miguel Accioly, professor do Instituto de Biologia da Ufba, faz um paralelo com a maré vermelha, que atingiu apenas parte da BTS em 2007. Nos municípios de Saubara e Santo Amaro, o fenômeno que provoca manchas escuras na água do mar provocou a morte de 50 toneladas de peixes e mariscos. “Se um acidente como esse do óleo entra aqui, a gente poderia ter uma mortalidade de pescado não por um tempo curto, como a maré vermelha, mas por anos. Se isso entrar nos mangues, o risco é muito grande para a produção pesqueira”, analisa Accioly. De fato, a BTS tem um conjunto de ecossistemas muito rico. Isso se destaca ainda mais porque ela fica em trecho do Oceano Atlântico um tanto menos diverso, se dá para dizer assim. “É como se fosse um oásis para esse oceano, porque ela recebe, na baía, alguns rios que trazem nutrientes do continente. Essa riqueza vem dos rios e se junta aos manguezais”. 

Para a professora Vanessa Hatje, do Instituto Kirimurê, a BTS chama atenção pela sua preservação. Ela acredita que é possível, para o governo estadual e para as administrações municipais, fazer, da baía, um estudo de caso para aplicar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU). “É possível trabalhar, por exemplo, com a qualidade da água nas cidades que abrangem a BTS, assim como mudanças climáticas e organismos de mitigação. Os manguezais acumulam grande quantidade de carbono. Podemos trabalhar tanto no sentido de preservar quanto de recuperar. Esses sistemas podem ser utilizados na economia do carbono limpo”, diz Vanessa. Marisqueiras e pescadores Da baía, famílias inteiras tiram o sustento. É gente como a cozinheira Erotildes Ferreira, 57 anos, que mora na localidade do Acupe, em Santo Amaro. Mais conhecida como Dona Nena, hoje ela é dona do restaurante Colher de Pau – que vende, principalmente, quitutes preparados com os peixes e mariscos da região. 

Por mais de duas décadas, era ela quem mariscava. Antes mesmo de completar 10 anos de idade, ia ao mangue catar mariscos com a irmã e aprendeu a limpar. “Meu pai era pescador e minha mãe levava o peixe para vender na Feira de São Joaquim em Salvador. Fez isso por 48 anos”, conta ela. 

Já mais velha, começou a trabalhar como cozinheira. Trabalhou em Salvador e até no Rio de Janeiro, sempre em cozinhas de restaurantes e de hotéis. Com esforço, conseguiu fazer com que os filhos tivessem outra profissão – o mais velho, de 33 anos, fez magistério; a mais nova, de 32, é técnica em segurança do trabalho. 

Mas, ali, diante do mar da Baía de Todos-os-Santos, Dona Nena sabe que não tem muitas alternativas. “A vida daqui é pescar e mariscar. Só que essa renda varia. Tem tempo bom, tem tempo ruim. Eu incentivei que eles buscassem outras carreiras, porque é muito difícil a vida de maré. Muito cansaço, você envelhece rápido. É uma vida muito sofrida e você vê que aquela profissão não vai adiante”, lamenta.Dona Nena pode ter deixado de mariscar, mas, só na BTS, a estimativa da Bahiapesca é de que existam 20 mil marisqueiras e pescadores. Em todo o estado, esse número deve chegar a 130 mil. 

“Vamos pensar que, se cada pescador desse representa uma família de cinco pessoas, é um contingente populacional muito grande que vive da pesca. Esse é um trabalho que começa no seio da família”, diz a pesquisadora Gal Meirelles, doutora em Cultura e Sociedade e professora do Instituto Federal da Bahia (Ifba) – campus Santo Amaro. 

Desde cedo, as crianças começam a ter contato com a pesca e a mariscagem. Por vezes, mesmo aqueles que conseguem a aposentadoria rural continuam trabalhando. Tudo feito de forma artesanal. Em muitos casos, os pescadores sequer têm os meios de produção – redes, motores, barcos. Eles têm, por outro lado, um conhecimento empírico repassado de um para o outro. 

Em sua pesquisa, a professora Gal chegou a documentar os cálculos em Baiacu, em Vera Cruz, na Ilha de Itaparica. Por semana, uma média de oito tripulações saía para pescar peixes como sardinha e pititingas. Em baldes, armazenavam 12, 15 quilos dos peixes. “Cheguei a uma conta de quatro a cinco toneladas semanais”, conta. 

Os mariscos têm outros aspectos. Para vender um quilo de siri por algo entre R$ 20 a R$ 30, as marisqueiras costumam reunir aproximadamente quatro baldes de siri com casca. O trabalho é essencialmente feminino. “Para catar cada siri, as mulheres fazem 32 movimentos. É absurdo, quando você pensa em termos de trabalho. Quando você vai dividir o valor de venda por horas trabalhadas, vai dar cerca de R$ 1 por hora. Ao longo dos séculos, essas comunidades têm sido muito penalizadas por esses processos de trabalho”, diz a pesquisadora. Na BTS, há projetos de distribuição de equipamentos, de acordo com a Bahiapesca. Segundo a assessoria do órgão, inclui balanças, freezers e redes para entidades e cooperativas. Além disso, a Bahiapesca ministra oficinas de saúde ocupacional para esse público, com distribuição de equipamentos de proteção individual (luvas, botas, camisas com filtro solar, calça e boné). 

Há, ainda, projetos de ostreicultura familiar, em Cachoeira, Vera Cruz e Salinas da Margarida e de repovoamento de caranguejo, em Santo Amaro. 

Tubinambás e ameríndios habitavam a área

A Baía de Todos-os-Santos (BTS) pode até ter sido “descoberta” em 1501, mas, de fato, já existia muita gente aqui antes da chegada dos portugueses. Como destaca o historiador Caio Adan, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) e pesquisador do Centro de Estudos do Recôncavo, ainda que a BTS seja tradicionalmente associada ao Recôncavo açucareiro, outras populações já tinham se estabelecido ali. “Tinha a presença dos tupinambás, além de civilizações ameríndias ainda mais antigas que os tupi. Havia a presença dos sambaquis, que são o que a gente chama de paleoíndios”, conta. Antes dos portugueses, a baía era chamada pelos tupis de Kirimurê – algo como ‘grande mar interior’. “Não há documentos muito numerosos, mas há relatos sobre a referência que os índios faziam a essa reentrância”, explica Adan.

A BTS era um espaço seguro para acolher a nova civilização colonial. Ao mesmo tempo que era ampla, também era mais fácil de ser defendida, justamente por sua embocadura não ser muito larga. A relação com os rios também facilitou o processo de interiorização das conquistas. 

Naquela época, a baía se tornou o principal mecanismo de penetração do território.“Esses rios que desaguavam na BTS foram os primeiros caminhos que permitiram, aos colonizadores, se interiorizar no continente”, diz Adan. À medida em que a BTS se abre para a modernidade – desde a criação de ferrovias até a implantação do Polo Petroquímico de Camaçari –, ela começa a viver a urbanização pela qual o Brasil passa a partir do século 20. A existência de uma metrópole como Salvador nas bordas da baía, inclusive, coloca ainda mais pressão sob os recursos naturais da região. 

“Mas, a despeito dessas transformações, a baía ainda é um lugar de sobrevivência e de existência de muitas comunidades tradicionais cujos modos de vida se ligam aos mais antigos. São as populações ribeirinhas, as populações quilombolas, comunidades que vivem da extração de recursos naturais”. 

Baía foi declarada sede da Amazônia Azul por entidades Em 2014, a Baía de Todos-os-Santos (BTS) foi proclamada capital da Amazônia Azul por entidades como a Associação Comercial da Bahia (ACB).

A Amazônia Azul é um projeto da Marinha do Brasil baseado na Convenção Internacional de Direito do Mar da Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com a convenção, todos os países costeiros têm 200 milhas náuticas de suas costas. “A BTS é central na costa brasileira. A Amazônia Azul é um cenário, uma espécie de portal. O que nos interessa (com a BTS) é atrair debates sobre a economia do mar. Nos interessa começar a conversar sobre a economia do mar”, diz o diretor do WWI-Worldwatch Institute no Brasil, Eduardo Athayde. De acordo com ele, a BTS pode ter seu potencial econômico expandido se preparando com destino, melhorando infraestrutura e segurança, além de garantir a conservação das áreas e se apresentar internacionalmente. 

Ele acredita, inclusive, que traria mais visibilidade para Salvador e as outras cidades da região. 

“No imaginário internacional, San Salvador é a Capital de El Salvador, pequeno país da América Central. Ninguém, fora da fronteira do Brasil, sabe que São Salvador da Bahia existe e custa muito caro investir na divulgação internacional de destinos. Capital da Amazônia Azul nos dá status internacional único, diferenciado e mídia espontânea a custo zero”, defende.