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Que a morte de Ágatha Sophia não seja apenas noticiada e lamentada

  • D
  • Da Redação

Publicado em 24 de janeiro de 2019 às 15:30

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

Espancada, estuprada e morta. Aos 2 anos de idade. Pelo padrasto.

As palavras acima emergem de notícias que circulam na mídia soteropolitana e são fartamente replicadas pelos mais diversos meios de comunicação, incluindo redes sociais, no restante do estado e até mesmo do país. Trata-se de um crime sexual que culminou com a morte da menina Ágatha Sophia, que morava em precaríssimas condições sociais e econômicas, juntamente com sua mãe e o companheiro desta, na periferia da cidade Salvador, Bahia, Brasil. Sua morte se deu no dia 22 de janeiro de 2019, isto é, no primeiro mês do ano.

Porém, e infelizmente, a triste e revoltante notícia não traduz apenas uma experiência de violação de direitos vivenciada pela pequena e indefesa Ágatha. Trata-se de um fenômeno social de grandes proporções que acomete muitas e muitas meninas por este Brasil afora. E pelo mundo também, pois constitui a realidade das sociedades marcadas pelos mais diversos tipos de desigualdades, dentre as quais ganha relevo as hierarquias e assimetrias de gênero, raça, classe e, no caso em tela, também de ordem geracional.

No contexto destas sociedades, denominadas patriarcais, por serem caracterizadas pela dominação e exploração dos homens sobre as mulheres, pessoas do sexo feminino estão constantemente expostas às mais absurdas formas de violência pelo simples e só fato de seres mulheres! Por isso, em sociedades como estas, dentre as quais a nossa se inclui, nascer menina, ou viver sob o signo da feminilidade, é um fator de risco. E um dos elementos que comprovam esta afirmativa é o fato de que o crime sexual praticado contra Ágatha, e que a levou a óbito, tem sido mais comum e frequente do que se imagina, ocorrendo nas mais diversas famílias sem que, na maioria dos casos, haja um desfecho fatal, o que dificulta seu reconhecimento público e, consequentemente, uma efetiva resposta social e estatal.

Pesquisas realizadas no campo dos estudos de gênero e feministas, além do acúmulo desenvolvido pelos movimentos em defesa dos direitos das crianças e adolescentes, tem desvelado esta mazela, evidenciado a necessidade de atuação do Estado frente aos inúmeros abusos e violações de direitos que se registram ano a ano tendo como vítimas seres humanos de tenra idade. Para o enfrentamento de tais questões se faz necessário conhecer profundamente o contexto social e cultural onde estes crimes se dão, a fim de que a intervenção estatal tenha de fato algum efeito, inclusive preventivo.

Dados oficiais registrados junto aos serviços de proteção à infância no Brasil, assim como pesquisas acadêmicas sobre a temática, indicam que as meninas são o alvo preferencial dos crimes de violência sexual cometidos no ambiente doméstico. Ou seja, é preciso reconhecer que a violência que acomete as meninas em seus próprios lares constitui uma das faces da violência de gênero, haja vista que as alcança desde muito cedo e se estende pela vida adulta, não cessando nem mesmo na velhice. Eis porque se faz necessário a adoção de um enfoque de gênero e a construção de políticas públicas voltadas ao enfrentamento da violência contra as mulheres em todos os ciclos de vida e não somente focada em mulheres jovens ou adultas.

Considerando o exposto, é possível dizer que respostas estatais precisam ser sistemáticas e intersetoriais, pois o problema da violência de gênero contra as mulheres envolve questões relacionadas à segurança pública, aos serviços de saúde, de assistência social, de educação, dentre outros. Além de ser uma temática que só pode ser entendida a partir da análise do contexto social e cultural que, na maioria das sociedades, costuma tolerar e legitimar tais práticas, pois opera com a ideia de que as mulheres valem menos que os homens e, portanto, seus corpos podem ser violados e suas vidas podem ser abreviadas independe da idade.

Por isto, é preciso perceber que esta tem sido a realidade de muitas Ágathas, Marias, Joanas, Rosas, Lúcias, Jéssicas, Sandras, Cleides e tantas e tantas e tantas e tantas e tantas e tantas e tantas outras meninas nas mais distintas idades, famílias e localidades geográficas, todas vitimadas, na maioria dos casos, por homens com quem tem algum grau de parentesco (ou relação familiar e afetiva) a quem caberia a responsabilidade de zelar por sua integridade e não violenta-las. Os índices apontam que os agressores são pais, padrastos, tios, primos, avós, irmãos, padrinhos, etc. Não se trata, portanto, de um caso particular, isolado ou de um tipo de família específica. Trata-se de um problema social dos mais graves e em face do qual todos somos responsáveis em alguma medida: família, Estado, mídia e sociedade em geral, pois precisamos refletir e agir para encontrar formas de enfrentar este problema, haja vista que a violência de gênero contra meninas e mulheres é responsável pelos mais elevados índices de violação de direitos humanos e mortes de pessoas do sexo feminino em nosso país.

Ademais, é importante frisar que quando nos deparamos com a morte de uma menina ou de uma mulher adulta, ocorrida, majoritariamente, no ambiente doméstico ou a este relacionado, em geral estamos visualizando não apenas mais um crime contra a vida em si, mas o ápice de um histórico de violências perpetradas em razão do gênero, ou seja, o máximo grau da violência machista, quando o direito de viver de uma menina ou de uma mulher já não é mais “autorizado” por aquele ou aqueles a quem a sociedade tacitamente confere o poder de definir, decidir e agir sobre elas: os homens de um modo geral e os homens que compõem sua família em particular. Acerca disto, são robustos os dados quantitativos disponíveis nos órgãos oficiais, embora as pesquisas científicas apontem que, apesar de elevados, são sempre subnotificados, ou seja, sempre há a chance de serem muito mais.

Se 70% das notificações de violência sexual registradas ocorrem contra meninas, não se pode mais olhar para este fenômeno sem recorrer às teorizações feministas sobre desigualdade de gênero. Se a faixa etária mais atingida é de 0 a 11 anos, não se pode falar disto sem recorrer ao debate das hierarquias geracionais, onde adultos consideram que tem poder de vida e morte sobre os mais jovens ou infantes, afinal, vivemos numa sociedade adultocêntrica que tem dificuldade de entender que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e que os corpos, sobretudo de meninas, não podem ser vistos como meros objeto de prazer de adultos, sobretudo homens conscientes do que estão fazendo com e contra elas. Se os dados apontam que os homens são os principais autores dos abusos sexuais contra meninas e cerca de 90% da violência sexual contra a criança e adolescente ocorre no seio familiar, precisamos questionar as relações de gênero no seio das famílias, articulando políticas focadas para estes agrupamentos, considerando e respeitando sua diversidade. Ademais, se pais e padrastos estão no ranking dos abusadores, precisamos falar de masculinidades e relações de poder na família e na sociedade em geral.

Ademais, sabe-se que a violência contra meninos e meninas se expressa de variadas formas: através de maus tratos físicos, psíquicos, sexuais, em forma de negligência, omissão da família ou do Estado, exploração sexual ou mesmo pelo seu abandono. Estes tipos de violências exigem respostas peculiares e demandam esforços conjugados no seu enfrentamento. Para tanto, a educação cumpre um papel importantíssimo, seja ela formal ou informal. Eis porque, ao contrário do que dizem alguns políticos, é preciso investir em educação sexual e em com enfoque gênero, pois sem esta perspectiva a sociedade não tem como visualizar e desmontar as armadilhas na qual as desigualdades de gênero presentes e os mencionados tipos de violências se constituem e se reproduzem.

É preciso, portanto, enxergar este tipo de violência sob a ótica das relações de gênero, ou seja, das desigualdades presentes na socialização, na cultura e no exercício ou negação da cidadania entre os gêneros. Além disto, convém falar das meninas no plural, pois elas são diversas e suas situações de vida também o são, haja vista a existência de uma multiplicidade de vidas e de experiências produzidas pela origem socioeconômica, racial, étnica, religiosa, etc. É necessário, então, e desde cedo, ensinar nas escolas que todas as meninas são sujeitos de direitos, e que há um conjunto de normas nacionais e internacionais que reconhecem e afirmam isto, tais como a Constituição Brasileira (1988); as Convenções de Belém do Pará (1995), de Viena (1993) e dos Direitos da Criança (1989); além do Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA (1990) e do Código Penal Brasileiro.

O reconhecimento em matéria legislativa fortalece a luta pelos direitos humanos das crianças e em particular das meninas, e orienta a exigência de sua concretização prática, pois o Brasil e a Bahia ainda tem muito a fazer para prevenir, punir e erradicar a violência contra meninas. Porém, apesar da ampla proteção jurídica, a infância pobre no Brasil expõe meninos e meninas, em sua maioria negras, a toda sorte de vulnerabilidade, conforme o que ocorreu com a pequena Ághata, pois, ao que parece, observando as informações sobre o contexto social no qual ela estava inserida, as condições objetivas estavam dadas para que a mesma fosse alvo de algum tipo de violência ao longo da vida, para além da estrutural e simbólica às quais já estava exposta: morava em condições sanitárias precárias, não tinha acesso à creche enquanto sua mãe trabalhava e ficava sob os cuidados de um adulto igualmente exposto a condições de vulnerabilidade social e econômica. Tudo isso não justifica, mas ajuda a entender o cenário a fim de verificar onde o Estado falhou e o que é possível fazer para responsabilizar autoridades e evitar que outras Ághatas passem pelo mesmo.

Por isso, considero que não basta focar somente nos atos dos responsáveis diretos pela menina, pensando que as autoridades estatais não tem nada a ver com isso, pois, repita-se, estamos falando de uma menina de 2 anos que foi alvo de violência sexual e, ao que parece, sua mãe, bastante jovem, havia se ausentado para trabalhar fazendo faxinas e a mesma estava sob os cuidados de um adulto jovem, subempregado, e moradores de um imóvel caracterizado pela visível pobreza e escassez de meios para o seu pleno e saudável desenvolvimento. Portanto, é preciso se questionar sobre o que temos feito enquanto sociedade e, sobretudo como Estado, enquanto instituição responsável por garantir os direitos elementares das crianças, para que as mesmas não sejam alvos de todas estas formas de violências aceitas socialmente e de violência sexual em particular.

Já imaginaram como seria a sociedade se cada vez que uma menina fosse exposta a um abuso sexual (culminado com seu óbito ou não) uma ou mais autoridades estatais, governantes máximos, de preferência, fossem responsabilizadas, administrativa, civil e penalmente, além do reconhecimento da violência institucional, pela ação ineficaz ou pela omissão ou ausência de serviços e equipamentos destinados à concretização dos direitos elementares destas crianças? Teríamos outras possibilidades de pensar e resolver o fenômeno, já que legislação fala em dever do Estado e, portanto, onde há dever, há responsabilidade, ainda que seja solidária, mas é responsabilidade, e é preciso que as autoridades ajam neste sentido, pois uma boa ideia seria o uso de ações populares ou ações civis públicas com obrigação de fazer decorrentes do apurado de crimes desta natureza. Não é bastante prender e punir agressores, embora seja absolutamente necessário. É preciso pôr o dedo na referida e fazer algo contra quem tem poder e nada ou pouco faz.

É preciso pontuar também que o risco de sofrer violência sexual se acentua muito em lugares onde os serviços comunitários são débeis ou inexistentes. E embora saibamos que estes crimes acontecem até mesmo dentro de mansões, o fato é que as políticas públicas de prevenção a isto precisam, sim, levar em consideração as meninas mais vulneráveis social e economicamente, que são a maioria da população e, não por coincidência, são pretas e pardas.

A literatura destaca que os abusos sexuais precisam ser vistos como fenômenos multifacetados e multifatoriais, com o que tenho total acordo. Afinal, questões de ordem cultural, econômica e socioambientail, além de aspectos psicológicos, precisam ser tomadas em conta para uma melhor construção da resposta estatal diante do fenômeno em apreço. Mas jamais se pode perder de vista que o risco de sofrer uma violência sexual está potencializado pela cultura da masculinidade hegemônica, que tente a ser hostil para com as meninas e as mulheres, já que entre nós ainda predomina uma socialização violenta de meninos, onde a força e a virilidade é vista como qualidade, atributo de poder. Por isso, o gênero é transversal a tudo isto e não há como compreender e enfrentar tal problema sem que haja esforços para transformar as relações de gênero na nossa sociedade.

Falar da cultura do estupro também se faz necessário, pois esta é complexa e aparentemente contraditória pois, ao mesmo tempo em se pune (até com a morte) um homem que abusa sexualmente de uma criança, também se reforça a desigualdade de gênero atribuindo responsabilidade às mães das vítimas que, segundo dizem, “não cumpriram com o seu papel social”. Ou seja, a crença de que as mulheres devem estar permanentemente presas ao ambiente doméstico e únicas responsáveis pelos cuidados das crianças retroalimenta a desvalorização cultural do feminino e reforça a divisão sexual do trabalho entre os gêneros.

Em geral, a sociedade encara a violência sexual contra as meninas como um caso de “descuido” dos pais, e em especial das mães, que são as primeiras a serem tachadas de negligentes e não protetivas, quando não acusam as próprias meninas de terem facilitado ou contribuído para o que lhe ocorreu. Será que isto se sustenta? Uma menina de 2 anos de idade contribuiu para sua própria violência sexual seguida de morte? É absurdo pensar assim! É importante dizer que as mães na maioria das vezes também estão em situação de violência e atribuir igual responsabilidade a elas é completamente injusto, pois as mulheres não dispõem do mesmo percentual de poder nas relações familiares e nas relações sociais de um modo geral.

Abuso sexual e maus-tratos refletem relações de poder, e de poder desigual. De poder patriarcal. Podem e devem ser vistos como fenômenos que ocorrem relacionados a outros fatores, como pobreza, desemprego, falta de perspectiva educacional e profissional dos pais, etc, mas não se pode olvidar da forma de organização e de distribuição do poder e dos papéis no interior da família. E perceber que estas relações de dominação-exploração entre homens e mulheres e entre adultos e crianças estabelecidas historicamente estão presentes desde a casa até o palácio presidencial.

Mas, de qualquer modo, é preciso enfrentar o problema. E muito já se foi feito. Mas é preciso fazer mais e fazer bem feito. O fortalecimento dos Conselhos Tutelares é fundamental. A implantação e implementação, nos municípios, dos outros serviços de atendimento às crianças e aos adolescentes, com enfoque de gênero, raça, classe e geração, é imprescindível. Uma maior articulação entre as instâncias municipais, estaduais e federal é obrigatória por lei. E uma maior disponibilidade (e valorização!) de serviços nas áreas de saúde, de educação e de assistência social que garantam atendimento às crianças e aos adolescentes com seus direitos ameaçados e ou violados é demanda de diversos movimentos em defesa deste grupo social.

Vale pensar no fenômeno da violência contra meninas/adolescentes a partir da compreensão do fenômeno da violência contra as mulheres, que atinge a todas indiscriminadamente e independente do pertencimento social, econômico ou racial/étnico. Mas não se pode acreditar que todas vivam de igual forma ou tenham as mesmas condições para compreender e enfrentar a questão. Como já foi dito, recortes de classe, raça, etnia, geração e localização geográfica são necessários. Sem os quais não se alcança o fim pretendido em matéria de politicas públicas. Eis porque nunca é demais afirmar que se trata de um fenômeno que exige muito compromisso e vontade política das autoridades públicas (e de toda a sociedade) no seu enfrentamento.

Admitir que o abuso sexual é uma expressão do machismo é um passo importante. Pois a violência sexual praticada contra uma menina como Ágatha não será compreendida sem as devidas lentes de gênero que, por si só, não dão conta da complexa realidade em que ela vivia, mas auxilia no desvelamento de uma experiência a que todas as meninas e mulheres estão expostas: a dominação masculina e a naturalização deste fato. Obviamente, como já foi dito acima, que o contexto social e econômico em que estava sendo criada também tem implicações importantes na compreensão do problema, mas isto também é uma questão de gênero, pois não há desenvolvimento social, econômico e cultural sem que a riqueza, os bens e o poder sejam distribuídos equitativamente entre as classes, entre os gêneros, entre os grupos étnicos e sua diversidade, inclusive geracional. Que a morte dela Ágatha não seja apenas noticiada e lamentada, mas que estimule a manutenção da visibilidade do fenômeno e que os governantes assumam o tamanho do desafio ao qual estão expostos. Que a sociedade cobre solução. E que as narrativas sobre a mãe da sejam problematizadas profundamente e que a “justiça” que se tentou fazer neste caso seja também objeto de ampla reflexão, problematização e repúdio. Que o Estado assuma sua responsabilidade na ação e na omissão diante da temática.

Reitero que precisamos de políticas públicas com enfoque de gênero para enfrentar a violência sexual contra as meninas. Precisamos de mais educação com perspectiva de gênero para evitar que este fenômeno seja considerado banal ou isolado da complexidade social. Em síntese, necessitamos lutar e exigir para que sejam postas em prática todas as políticas e todos os direitos contra os quais o atual governo federal costuma se pronunciar. E que o governo estadual e municipal não atue promovendo o desmonte dos equipamentos que já conquistamos, mas sim fortalecendo-os e criando mais e mais.

Que a pequena Ágatha descanse em paz. E que nós que compomos a sociedade baiana (e brasileira), que lamenta sua morte e repudia as circunstâncias em que se deu, façamos alguma coisa para que não sigamos lamentando outras mais.

Salete Maria da Silva é advogada, docente do Departamento de Gênero e Feminismo/UFBA, coordenadora do JUSFEMINA, grupo de pesquisa e ação em gênero, direito e políticas para a igualdade.

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