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Da Redação
Publicado em 5 de setembro de 2021 às 10:35
- Atualizado há 2 anos
O que fazer quando um sujeito genial como Eduardo Galeano define o conceito de utopia? O cara enxerga utilidade prática no etéreo, transforma isso em poesia e eu, este sujeito ridículo e limitado que só uso 10% da minha cabeça animal, vou descartar com o carimbo de clichê do clichê? Aonde...!>
Sim, já virou chavão dizer que as utopias, justamente por serem inalcançáveis, servem para nos manter caminhando, persistindo na transformação das coisas. >
E daí? >
Pessoalmente, acho maravilhoso quando um Eduardo Galeano da vida consegue “emplacar” um chavão e passa a ocupar algum espaço nesse latifúndio chamado senso comum. Mesmo citado por quem nunca tenha lido sequer as Veias abertas da América Latina. E com certeza não são poucos os que o leram depois de conhecê-lo pelo batido chavão.>
Dar um sentido prático para ideias utópicas é uma contribuição inestimável para a humanidade, penso. E como falamos de um poeta-pensador e do chavão que o tornou universal, façamos bom uso da vida percebida por Galeano.>
Por exemplo: a minha utopia como defensor dos direitos da infância e da juventude é a revogação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Claro! Porque eu sonho com um país onde nascer e crescer com os direitos respeitados seja algo tão comum quanto um chavão. Da mesma forma, não vejo a hora de revogar essa tal Lei Maria da Penha! Não vejo e provavelmente não verei. Porque o fim da violência contra as mulheres é tarefa para mais de uma geração.>
Aos 53, atleta de base para qualquer time sênior, quero ver o Estatuto do Idoso caducar. E, seguindo na trilha das utopias, espero ver o Estatuto da Igualdade revogado por perda de objeto, quando afinal chegar o dia de vermos superadas todas as formas de preconceito e discriminação. Por hora vamos nos afastando perigosamente dessas utopias. Sim, perigosamente! Renunciar ao ideal é rebaixar expectativas para acomodar um real sempre muito abaixo do que poderia ser o mundo à nossa volta. >
E hoje, porque são provas cabais das doenças da nossa sociedade, precisamos de leis para dizerem de obviedades, como cuidar da infância, respeitar a velhice, as mulheres e até de lei para punir exploração de trabalho escravo, em pleno século XXI. >
Cada ano de obscurantismo causa pelo menos uma década de atraso civilizatório. Cada passo dado para trás acrescenta mais dois na distância que ainda precisamos percorrer, olhos fixos no horizonte.>
Uma militância erudita, ou pretensamente erudita, atravessou gerações desdenhando os chavões em discursos emplumados. Contraditória e simultaneamente, construía os seus próprios – desde que academicamente corretos, com citações, ABNT e o escambau.>
Vem de 2018 a imagem capaz de falar mais do que mil teses. Diz muito, ver a estampa de um candidato a genocida vestir corpos jovens nas mesmas ruas onde a imagem de Che, eternizada pelo fotógrafo Alberto Korda, predominou por décadas. A foto mais reproduzida da história é, aliás, um fantástico chavão imagético.>
Quando as juventudes deixam de acreditar na possibilidade de mudar o mundo, a tragédia zomba da esperança, como agora, ameaçando deixar de ser extraordinária para ser parte do cotidiano. O que esperar de uma geração que amadurecerá tendo queimado a etapa em que se acredita piamente na possibilidade dos sonhos?>
Mas afinal, para que servem as utopias? E os chavões? Melhor pegar o tambor e o ganzá, escrever uns clichês em folhas de cartolina e papel metro e sair a cantar chavões por ai.>
Enquanto for possível dispensar as pedras na luta-caminhada em busca das nossas utopias, os chavões também podem ser armas boas, assim como as noites e os poemas. Chavão final, ponto!>
Ernesto Marques é jornalista e radialista>