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Da Redação
Publicado em 2 de abril de 2021 às 16:00
- Atualizado há 2 anos
A primeira capital do Brasil comemora 472 anos no dia 29 de março. Ser o primeiro traz uma responsabilidade grande. Nós da Casa Branca sabemos muito bem disso. Fundada por volta de 1798, com origem na Barroquinha, sendo transferida nos anos de 1840 para o Engenho Velho da Federação, a nossa roça tem o orgulho de dizer que é o primeiro terreiro de candomblé do país. Em 2021, completa 223 anos. Chamado em iorubá de Ilê Axé Iyá Nassô Oká, é o mais antigo e um dos mais respeitados santuários da religião dos orixás. >
Da nossa casa descendem, por exemplo, os famosos templos do Gantois e do Axé Opô Afonjá, cada um deles fonte de inúmeros outros. Por isso, o poeta Francisco Alvim, evocando Edson Carneiro, chamou essa venerável matriz de "Mãe de Todas as Casas". A Casa Branca é o primeiro monumento negro reconhecido como patrimônio do Brasil e da América Latina. Foi tombado como templo religioso pela União e pelo Município.>
A restauração da Praça de Oxum, que fica na parte da entrada do terreiro, foi feita com base em um projeto de Oscar Niemeyer, que o presenteou à comunidade do templo de Iyá Nassô. Três Governadores Baianos (Waldir Pires, Antônio Carlos Magalhães e Jaques Wagner), além de vários prefeitos de Salvador, já foram recebidos no célebre terreiro e lhe fizeram homenagens. Nenhum desses visitantes ilustres jamais acreditaria que se pudesse pôr em dúvida a condição de templo religioso da Casa Branca do Engenho Velho. >
Por isso, após assumir recentemente o cargo de mãe de santo, admito que ainda estou me preparando psicologicamente. A responsabilidade que orixá me designou é enorme. Ser a mãe de santo da “Mãe de Todas as Casas” é uma missão única. Não tem como negar o peso enorme de saber que estou sentada na cadeira da fundadora do terreiro, a princesa africana e nossa eterna rainha Iyá Nassô. Ainda mais em um momento como o que estamos vivendo.>
Tenho pedido aos nossos ancestrais equilíbrio e força para lidar com a pandemia. Mesmo nós, que nos comunicamos com o mundo invisível, ainda tentamos entender o que Olodumarê (o dono e criador do mundo) está querendo nos ensinar. Por cultuarmos vários ancestrais e a natureza, as pessoas acham que somos politeístas. Mas somos monoteístas: temos a crença em apenas um único deus supremo. Alguns chamam de Olodumarê e outros de Olorum (o dono do Céu, das matas e das águas). A pandemia nos faz perguntar a ele o que está acontecendo. A resposta um dia chega. Sempre chega. >
Acreditamos que, por meio de Omolu e Obaluaiê (ancestrais da doença e da cura), em algum momento vamos nos livrar desse mal. Enquanto isso não acontece, estou muito preocupada porque muitas pessoas estão brincando, estão agindo como se estivesse tudo bem. O planeta está mexido e sem perspectiva de soluções rápidas. Pela maneira como os nossos governantes e boa parte de nosso povo vem se comportando diante da pandemia, não tem como não se preocupar. >
A morte está solta. Essa não é a hora e nem o momento de fazermos festas. O momento é de silenciar os atabaques. A Terra pede silêncio, reflexão. É hora de pensar e pedir pelo próximo, pelos enfermos, por aqueles que se foram. Não significa que vamos deixar de cultuar nossos ancestrais, de zelar e nem de rezar. Não vamos deixar de acender uma luz, não vamos deixar de botar uma água nas quartinhas, não vamos deixar de botar um grão, um alimento para eles.>
Mas esse não é o momento de se fazer oferendas em grupo, iniciações ou obrigações. Quando eu abro a porta para minha comunidade, o terreiro enche. Mesmo que eu esteja de máscara, a nossa religião é uma religião de toque, uma religião de abraço, uma religião de pedir a benção, de pegar a mão e levar até a boca para beijar. A gente se abraça e se aglomera. >
Orixá quando chega em terra no corpo de sua filha ele nos abraça, ele comemora por estar conosco e nós gritamos de alegria: Obánixé Cauô Cabiessilé!, Ora iê iê ô! Mas, nesse momento, orixá nenhum vai se aborrecer. Ele vai entender o que o mundo está passando. Ele está vendo, está entendendo que estamos pedindo que a terra fique forte de novo. Quando tudo isso passar, a gente poderá voltar a cultua-lo como sempre fizemos. Não há motivos para comemorar nada. >
Não tenho receio de demonstrar minhas fraquezas. A pandemia está sendo um teste realmente para mim. Porque eu também sou do grupo de risco. Por causa da idade, estou me preservando o máximo que posso. Eu, como filha de Xangô, estou bem dentro do casco do ajapá (cágado em ioruba), escondida e protegida, pedindo proteção a orixá. Que nós possamos, juntamente com a nossa comunidade, com a população de nossa Salvador e com aqueles e aquelas que acreditam nessa energia chamada orixá, ter dias melhores em breve. >
Não é fácil, principalmente quando estamos longe de tudo, fechados em nossas casas, escutando na televisão as notícias trágicas mundo a fora. Pessoas conhecidas e outras amigas estão partindo. Temos que continuar fazendo nossa parte, ficar em casa o máximo de tempo possível, usar máscaras, álcool gel, colocar o joelho no chão clamando, pedindo, implorando aos orixás, a Olodumarê que tenham misericórdia de todos nós. É isso que estou fazendo dentro do meu casco do ajapá, pedindo a proteção não somente para mim, mas para todos nós.>
No final das contas, não temos do que reclamar. Além dos orixás, me apego a história de uma de nossa primeira matriarca. Francisca da Silva, a nossa Iyá Nassô, lutou muito para construir essa nossa riqueza de axé. Eu nem tenho palavras para expressar e definir a gratidão, o orgulho e admiração que tenho por ela. Não dá para mensurar o tamanho das dificuldades que uma mulher negra naquela época deve ter passado para resistir e ainda construir nosso axé. >
Se hoje uma mulher negra passa o que passa, imagine naquela época. Francisca conseguiu se livrar da escravidão, se tornou liberta e libertou outras pessoas. Antes de morrer, ainda fundou nosso axé. O que é essa pandemia perto de tanta luta, de tanta resistência contra séculos de racismo e escravidão? Por isso, mesmo enfraquecidos, não podemos nem pensar em desistir. >
Sei que, a partir do momento que fui escolhida, preciso ser exemplo para a comunidade do primeiro terreiro de candomblé do Brasil. E não só dele. Sou referência para os moradores do Engenho Velho da Federação, que reúne mais de 30 comunidades religiosas de matriz africana, e também para todo o povo da minha amada Salvador. Um povo majoritariamente negro e, por isso mesmo, acostumado a grandes lutas e revoluções. No dia do seu aniversário, quero convocar todos a resistir. Só assim vamos vencer mais essa guerra! >
Mãe Neuza de Xangô Aganju é a atual mãe de santo do Terreiro Casa BrancaOpiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores >