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Carolina Cerqueira
Publicado em 21 de julho de 2024 às 05:00
Há uma semana, o Porto do Moreira existe sem os Moreira. O Antônio se foi em 2018. O Francisco, mais conhecido como Chico, no último dia 12. O falecimento, aos 76 anos, encerra a história do restaurante, aberto em 1938, que ocupa o número 486 da Rua Carlos Gomes, em meio ao frenesi de ônibus e comerciantes do Largo do Mocambinho. Há dois anos com uma placa de “vende-se” na porta, o estabelecimento agora está livre para seguir seu rumo sem que os irmãos Antônio e Chico tenham que viver o luto da despedida. >
O processo começou na terça-feira (16), quando Cristina Moreira, 46 anos, filha de Chico, foi até o local para arrumar algumas coisas. Mas a despedida que predominava não era a do restaurante e, sim, ainda a do pai. Ela havia acabado de buscar as cinzas da cremação quando abriu as portas para a equipe do CORREIO. >
Durante a conversa, pessoas passaram para prestar condolências. “Meus pêsames, minha querida”. Eram antigos clientes. Mas outras ainda não sabiam da notícia e pararam para cumprimentá-la. “Tudo bem? Cadê o pai?”. E Cris não conseguiu segurar a emoção ao informar. Ficou nítido o clima de vizinhança e o carinho que as pessoas têm pelo Porto do Moreira e por Chico.>
Turma do pauzinho>
Ele faleceu numa tarde de sexta, dia da reunião semanal da chamada “turma do pauzinho” no restaurante. Os clientes se reuniam para jogar; às vezes pauzinho, às vezes dominó. A diversão era levada tão a sério que cada um tinha o próprio copo, prato e talher personalizado, em homenagem ao grupo. Ainda encontramos, em meio às caixas, dois desses pratos pelos quais passavam moqueca de carne e miolo com ovos e camarão seco, os mais pedidos. >
Mamede, Foca, Lulú, Momó e Pedrão são alguns dos nomes gravados na louça. Cristina lembra, em um momento de descontração, de boas histórias da turma. “Alguns vinham para pegar a comida e levar para casa e comer com a esposa. Mas quem disse que iam embora daqui? Acabavam sentando, tomando a batida de cachaça, mel e limão e jogando conversa fora. As esposas ligavam e eu atendia. ‘Cadê meu marido? Eu sei que ele está aí. Manda ele para casa!’, elas diziam.” >
O Porto do Moreira também recebeu clientes famosos, como Riachão, Batatinha, Zeca Pagodinho, Caetano e Gil. Aparece nos livros de Jorge Amado e na novela da Globo Segundo Sol. Agora, o lugar pequeno, mas aconchegante, tem espaço de sobra com o salão quase vazio.>
Espaço vazio>
As cadeiras já não estão mais lá, foram vendidas. As mesas continuam, encostadas na parede do lado esquerdo. Elas servem de suporte para as caixas que guardam pratos, copos, xícaras e talheres. Ainda há algumas panelas e suportes de garrafas de cerveja, além de um botijão de gás de 45 kg cheio. As paredes, no entanto, que davam graça ao lugar, estão vazias. >
Só resta um adesivo pela metade, rasgando ao meio o galo que indica a origem portuguesa do pai de Antônio e Chico e compõe a logo do restaurante. Os ganchos nus denunciam a ausência dos mais de 40 quadros, que estampavam fotos e recortes de jornais e revistas. Os artefatos estão encaixotados na casa de Cristina, ainda sem rumo definido. >
Por enquanto, as memórias seguem em silêncio. Também no escuro. Com a luz já desligada, Cristina e o marido usam a lanterna do celular para organizar os objetos. Eles fazem idas regulares com medo da violência na região. Antes de fechar, o local chegou a ser invadido pelo telhado. >
Foi no dia 12 de julho de 2023 que o Porto do Moreira parou de atender. Exatamente um ano antes da morte de Chico Moreira. A filha compartilha a tristeza que o pai viveu nesse período e o apego que tinha pelo restaurante. Foi o baixo movimento e as contas apertadas que obrigaram o encerramento das atividades.>
Luto pelo fechamento>
Quando a venda foi anunciada, em 2022, o próprio Chico revelou, em entrevista ao CORREIO, que havia prometido ao pai que não deixaria o estabelecimento fechar. Até o final de julho do ano passado, ele ainda ia pontualmente ao local, se recusando a deixar a ficha cair. De lá para cá, a rotina passou a ser disputar a TV com os netos José e Chico, de 4 anos. >
Chegou a cozinhar na Semana Santa, para a família, já com as mãos trêmulas, moqueca de camarão e salada de siri. São dois dos pratos que compunham o clássico cardápio de cozinha afetiva do Porto do Moreira, com receitas portuguesas abrasileiradas criadas por José, pai de Antônio e Chico, e não alterado desde a abertura da casa. Mas Chico se recusava a se animar mais do que isso. >
“Cheguei a propor a ele que abríssemos outro restaurante, menor, em outro local. Mas ele não queria sair de casa de jeito nenhum. Foi aí que fiz a proposta de montar um delivery, mas nem assim meu pai se animou muito”, diz Cristina.>
Futuro do Porto do Moreira>
Seguidora do espiritismo, ela acredita que há um momento certo para que as coisas aconteçam. “Ele não queria ver a venda do restaurante, a retirada das coisas de dentro, o local sendo ocupado por outra coisa. Tivemos pessoas interessadas em comprar durante esse tempo, mas nada foi para frente. Agora, acho que as coisas estão prontas para o encerramento desse ciclo”, reflete. >
Ela confirma que quer dar seguimento à ideia do delivery. O esquema funcionaria na casa dela, recebendo pedidos para o dia a dia e também encomendas. A cozinha seguiria o modus operandi do Porto do Moreira e o nome permaneceria. “Mas faríamos uma redução no cardápio porque era uma das coisas que eu conversava com meu pai. Eram muitos itens e ele se recusava a cortar”, acrescenta Cristina. >
Além do serviço de delivery, a filha planeja também onde vai depositar as cinzas do pai e onde será a missa de um mês. “As cinzas eu quero levar perto da Igreja do Senhor do Bonfim, talvez na Ponta de Humaitá porque ele adorava praia. E a missa, que deve ser no dia 12 de agosto mesmo, está sem local definido, mas quero fazer porque foi tudo muito rápido e muitos amigos não conseguiram se despedir”, finaliza Cristina. >