Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Thais Borges
Publicado em 7 de junho de 2025 às 05:00
Três anos atrás, a hoje charuteira Priscila Pinheiro, 23 anos, chegou à fazenda Feanbe, em Alagoinhas, para começar aquele que seria o seu primeiro emprego na vida. No local, contudo, ela e outra moça foram convocadas para um teste num trabalho diferente: a produção de charutos. "Foi uma coisa muito inesperada. Nunca tinha visto um charuto na vida. Não sabia nem para onde ia", lembra. >
Ela acabou sendo contratada justamente para o novo ramo. Lá, encontrou colegas como a charuteira premium e supervisora do grupo na fábrica da Jamm Cigar, Lucinea Bispo, 48. Nea, como é mais conhecida, começou no ramo há 19 anos, em uma empresa que já não existe mais. "Eu era bem jovem e surgiu essa fábrica perto da minha casa. Quando falei com meu pai, ele não queria. Disse: ‘você não vai para esse mundo, sua avó já fumava cachimbo". Ela decidiu experimentar por seis meses e, desde então, não saiu mais desse universo. >
Histórias como as de Priscila e de Nea se repetem em todas as fábricas de charutos da Bahia. Como uma atividade artesanal essencialmente feminina, a produção charuteira baiana se consolidou como a maior do país, numa liderança sem muitos concorrentes. Mais de 85% de todo o tabaco produzido para charuto no Brasil vem do estado, segundo o Sindicato da Indústria do Tabaco na Bahia (Sinditabaco-Bahia). >
A média de produção anual na Bahia é de 17.500 toneladas, o que faz com que as atividades ligadas ao setor gerem cerca de 5,5 mil empregos diretos e indiretos, ocupados, em sua maioria, por mulheres. De acordo com o Sinditabaco, oito em cada dez trabalhadores são mulheres. No entanto, em algumas empresas, esses percentuais se aproximam dos 100%. Em muitos casos, como o de Priscila, a produção de charutos é também o primeiro emprego formal delas. >
“Nas fábricas, são gerações de mulheres charuteiras que sustentam suas casas e formam seus filhos com esse trabalho. Muitas charuteiras que atuam hoje, são netas e filhas de charuteiras também. Esses fatores contribuem para a manutenção e importância histórica das mulheres no setor", analisa o diretor-executivo da entidade, Marcos Augusto Souza. >
Perfil>
Por dia, charuteiras como Priscila e Nea conseguem fazer entre 200 e 300 charutos. A marca onde trabalham, a Jamm, teve início com apenas cinco mulheres. Hoje, são 32 charuteiras, mas o número de trabalhadoras é maior, contando outros setores dentre os 58 funcionários. A maioria delas vive no Riacho da Guia, localidade na zona rural de Alagoinhas. Na equipe de produção, apenas o master blender (o responsável por criar os sabores) é homem. >
Cada uma costuma ficar em apenas uma atividade da cadeia, que vai do enchimento e da capeação (ou seja, a colocação da folha que serve como capa) até classificação e embalagem. Na fábrica, Nea supervisiona e é uma espécie de curinga. Se precisar de alguém no enchimento, ela está lá. Se faltou alguém na embalagem, ela vai também. Além disso, percorre o Brasil em feiras de charuto. Em setembro, viaja para a Alemanha com a equipe da Jamm para levar os produtos da marca a uma feira internacional. >
Para Nea, existe um motivo pelo qual mulheres se tornaram mais especialistas na produção. "Mulheres são mais delicadas que homens e esse é um trabalho que exige muita delicadeza. Falo muito para as meninas que estão começando que, se você chegar no mundo do tabaco e não criar aquele amor, não consegue ficar. Porque você tem que sentir o tabaco, sentir se está em perfeitas condições. Se não estiver, não consegue dar o melhor de si", analisa. >
Existe, inclusive, uma mística envolvida nessa parte do trabalho. Elas acreditam que, se a pessoa não está num dia bom por alguma razão, o charuto não sai. "Se a mulher chegar lá e estiver mal, se estiver ‘naqueles dias’, não dá certo. É necessária uma precisão grande", diz Priscila. >
Elas lembram de um episódio recente que ilustra bem essa situação. Uma funcionária - considerada uma das melhores charuteiras - tinha perdido a mãe. Depois de alguns dias afastada, retornou ao trabalho. No primeiro dia de retorno, os charutos não ficavam perfeitos. No segundo dia, foi a mesma coisa. Saíam grandes demais, finos demais, rechonchudos demais. >
"Deixamos ela ficar mais 15 dias afastada, para a mente dela absorver o que tinha acontecido. Porque você tenta, tenta, e não consegue. Isso é porque você coloca sentimento no charuto", acrescenta Nea. Depois desse período, a colega voltou ao ritmo de sempre. Desde então, elas têm consultas semanais com um psicólogo na fábrica.>
Mulheres charuteiras
Tanto Priscila quanto Nea são, além de charuteiras, apreciadoras do charuto. Com os anos, elas também passaram a degustar o produto, mas são minoria entre as trabalhadoras. "Minha mãe é evangélica, mas ela aceitou numa boa. Na minha opinião, falta quebrar o preconceito entre as mulheres", diz Priscila. Quando recebe pedidos para indicar um ‘charuto para mulher’, Nea tem uma resposta pronta: "Digo que não existe charuto para mulher. Existe o que você se aperfeiçoa e o que você gosta", completa. >
O fundador da Jamm, o empresário José Antonio Martins Monteiro, conta que a maioria das charuteiras da empresa estão em seu primeiro emprego formal. "Elas estão se profissionalizando na arte de fazer charuto. São verdadeiras artesãs. A mulher tem mais leveza, mais tom. Ela precisa passar esse toque para o charuto. Não pode apertar muito, não pode apertar pouco. Tem que ser na medida", explica ele, que hoje é conhecido como o Mr. Jamm. >
Hoje, a marca já tem dois charutos com pontuação acima de 90, em revistas internacionais: o JP50, com pontuação 91, e o Churchill, com 93. A JAMM foi fundada em 2018, mas até 2021, não comercializava os produtos. A produção para venda começou apenas em 2022, já com as charuteiras. >
Ele faz parte da Associação dos Produtores de Charutos Artesanais (Apcab), fundada em 2023 para discutir com entidades e órgãos de saúde sobre a importância do tabaco negro na cultura e na economia. "Nós estamos falando do primeiro cultivo agrícola do país, porque o tabaco já era nativo. Tanto que, no símbolo da República, consta a folha do tabaco e a folha do café. Um plantio de tabaco negro emprega 10 pessoas por hectare. Essa é uma das maiores empregabilidades do campo. Tenho plantio de laranja, limão, gado e nada emprega como o tabaco negro", explica Monteiro. >
Tradição>
Em outras fábricas, a rotina das charuteiras é parecida. É o caso da profissional Aline Ribeiro, 35, que trabalha no ramo há 10 anos - atualmente, na fase de capote e enchimento na Fábrica Leite & Alves, em Cachoeira. Essa etapa é a que dá estrutura e acabamento à peça. "A gente faz diferentes tipos aqui na fábrica. Do modelo que estou fazendo agora, que é um charuto menor, produzo 130 unidades por dia", conta. >
Já a charuteira Maria Rita da Silva, 52, é uma das que aprendeu o ofício passado de gerações. Ainda criança, dizia que seria charuteira um dia e chegava a enrolar as folhas de fumo que encontrava. "É a marca registrada da minha família. Foi com esse trabalho que sempre sustentei a mim e meus filhos. Tenho o maior orgulho de saber que os charutos que faço estão espalhados mundo afora", pontua. >
A profissão, contudo, é ainda mais antiga do que os registros de uma mesma família. Remonta ao Brasil colonial. De acordo com a historiadora Rosana Falcão Lessa, nesse período, o plantio, beneficiamento do fumo e a produção de charutos eram feitos por pessoas negras escravizadas, livres e libertas, no Recôncavo baiano. >
"As mulheres foram força de trabalho predominante tanto nas manufaturas de charuto, como nos cuidados com a plantação do tabaco, onde o senso comum atribuía como características femininas: fragilidade, docilidade, paciência e atenção", explica ela, doutora em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, com pesquisa sobre o trabalho feminino no Recôncavo Fumageiro. >
"O apelo visual e cultural do Recôncavo Fumageiro está fortemente associado à imagem feminina, seja ela vinculada à engenhosidade na produção de charutos artesanais ou na criação de músicas e danças que nasciam no cotidiano da lida e refletiam estratégias de resistência, a alegrias, devoções, desafios e códigos que sedimentavam valores ancestrais". >
No entanto, ela enfatiza que os padrões burgueses, racistas e patriarcais propagaram ideias como as de que ‘os charutos baianos seriam saborosos por serem enrolados nas coxas de mulatas’. Esse suposto método não é utilizado pelas fábricas atuais. "A história do Recôncavo é a história das mulheres negras. A economia, a cultura e a religiosidade estão alicerçadas nessa presença", acrescenta. >
Os primeiros registros da produção do tabaco na Bahia remontam ao século 16 e, por conta disso, o estado é considerado o berço do cultivo no país. De acordo com o Sindicato da Indústria do Tabaco do Estado (Sinditabaco), atualmente, a Bahia tem desde o plantio da semente até o charuto finalizado. >
Segundo o presidente da entidade, Renato Madeiro, o tabaco produzido aqui tem aspectos específicos de solo e clima, além da cultura e da história. “A união desses elementos aliada à expertise do saber-fazer centenário das charuteiras são ingredientes para a receita do sucesso que torna o charuto baiano único no mundo”, conta.>
É o caso da fábrica Musketeiros, em São Gonçalo dos Campos, que tem uma história que remonta a mais de um século de tradição na mesma família. O proprietário Joaquin Menendez explica que seu avô - Alonso Menendez - era dono da fábrica Monte Cristo em Cuba, no século 19. >
"Anos depois, em 1977, meus tios vieram para o Brasil e iniciaram uma fábrica no Recôncavo da Bahia, para seguir com essa atividade tradicional da nossa família. Tenho orgulho de seguir com esse legado. Hoje, em minha fábrica de pequeno porte, fazemos cerca de dois mil charutos por mês”.>
Para que o charuto baiano seja reconhecido internacionalmente como um produto cuja origem tem valor agregado, existem algumas iniciativas do segmento. No Centro Internacional de Negócios (CIN) da Federação das Indústrias da Bahia (Fieb), há apoio para que esses produtos sejam internacionalizados sem deixar de lado a ligação com o território. O charuto é uma das cadeias produtivas apontadas por eles como ‘4Cs’, que ainda conta com cacau/chocolate, café e cachaça. >
É algo parecido com o que acontece com o champanhe da França e presunto parma da Itália. "O objetivo desse projeto era justamente estruturar uma estratégia promocional cujo valor maior fosse a questão sociocultural, como esse produto é vinculado à história local. No caso do charuto, tem todo o valor histórico", explica a gerente do CIN, Patrícia Orrico. >
O trabalho, segundo ela, é de articular o apoio ao setor com outras entidades e com embaixadas de alguns países. "O charuto da Bahia é bastante bem recebido. Alguns estão entre os melhores do mundo. Para você ter ideia, a capa do fumo também é exportada. Muitos charutos (de outros países) são feitos com o tabaco local, mas tem uma capa do fumo baiano".>
Dannemann Avenida Salvador Pinto, São Félix. (75) 3438-2500.>
Menendez Amerino Rua Antiga da Linha, São Gonçalo dos Campos. (75) 99105-4065>
Jamm Cigar Fazenda Feanbe, Riacho da Guia, Alagoinhas. (21) 99823-1558.>
Leite E Alves Avenida Antônio Carlos Magalhães, Cachoeira. (75) 3425-2817>
Mata Fina Rua Manuel Caetano da Rocha, Cruz das Almas. (75) 3621-2878.>