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Publicado em 11 de maio de 2025 às 11:00
– Pai, eu surtei. Me interna, eu surtei. Preciso ser internada! >
O que fazer diante do apelo desesperado de uma menina de apenas 12 anos? A resposta está nas páginas do livro “Aconteceu com Minha Filha - Uma história real sobre os abismos sombrios da internet” (Editora Geração, 2025). Nele, o autor Paulo Zsa Zsa relata de forma crua e corajosa o doloroso processo para livrar sua única filha, Júlia, do universo sádico e perverso, aparentemente invisível, do mundo digital. Ele não fazia ideia de que a jovem estava mergulhada em comunidades nocivas no Discord e desenvolvia dependência digital, culminando em automutilações, tentativas de suicídio e no pedido de internação. Os nomes são fictícios para preservar a privacidade da família. O livro, em pré-lançamento, tem a contracapa assinada pelo pediatra Daniel Becker e pelo influenciador Felipe Neto. >
Assim como o pai na série da Netflix "Adolescência", em que o filho de 15 anos é acusado de matar a facadas uma colega de escola, Paulo viveu os sentimentos de culpa, abandono, raiva e, sobretudo, de impotência diante de uma realidade devastadora: a manipulação que vem do submundo da internet. No livro, o autor conta que, a partir do pedido de Júlia para ser internada, começou a entender o que estava acontecendo com a filha : desafios online, ‘panelinhas’, vídeos feitos por ela, exibindo os cortes feitos na própria pele, estimulados pela falsa sensação de pertencimento. >
O autor explica que o objetivo do livro é fazer um alerta: >
- A cada dia que leio a notícia de uma criança ou adolescente vítima da internet, tenho ainda mais certeza da urgência desse alerta. Torço para que meu livro chegue aos pais como uma forma de evitar tragédias. >
Como milhares de crianças e jovens no mundo, Júlia estava viciada. Ela se tornou agressiva, introspectiva, não queria sair de casa. A vida era o celular. No início, Paulo hesitou em fiscalizar o telefone da garota, sentia-se constrangido, até chegar o momento em que precisou impor limites à adolescente e viu-se obrigado a cortar radicalmente as telas. >
O pediatra Daniel Becker, um dos principais nomes do país na defesa da infância, descreve o caso como um retrato potente e necessário da crise de saúde mental da juventude: >
- É uma história do nosso tempo, e que precisa ser lida. Para que nossos filhos e filhas possam viver em paz, com saúde física e mental, aproveitando tudo de maravilhoso que o mundo real pode oferecer, e curtindo o ambiente digital de forma adequada e segura. >
A obra foi escrita em apenas quatro meses e o autor conta que funcionou como uma terapia, uma enorme catarse. “Foi doloroso, mas muito necessário”, explica. Com o objetivo de servir como um sinal de alerta para pais, educadores e adolescentes, ao longo das páginas Paulo detalha como os perigos não estão apenas nas ruas, mas também — e cada vez mais — dentro dos quartos das crianças, onde a conexão com o mundo digital acontece longe dos olhos dos adultos. >
Para o influenciador Felipe Neto, o livro é uma denúncia e um chamado: “É a dor de uma família que pode salvar a vida de outras. Precisa ser lido por todos que têm filhos ou convivem com adolescentes. A internet nos oferece possibilidades incríveis, mas também riscos que não podemos ignorar. Como alguém que acompanhou de perto o nascimento e o crescimento do mundo digital, afirmo com convicção: vivemos uma epidemia de crimes online”, afirma. >
A história pode soar semelhante para inúmeras famílias que passam por esse tipo de problema. Qual a hora certa de intervir? Como ajudar os jovens a saírem dessas armadilhas impostas por grupos na internet? Paulo achou um caminho. Não desistiu. Foi um processo sofrido por todos os envolvidos, mas ele conseguiu dar à Júlia o que tinha à mão para trazer a filha de volta à ‘vida real’: acolhimento, escuta e amor. Mas o autor deixa claro: em muitos casos, essa chance não existe — e é justamente por isso que o alerta é tão urgente. (veja entrevista com autor no box) >
O caso da menina Sarah e a epidemia de crimes on-line>
A história da menina Sarah Raissa, de 8 anos, teve um final trágico. A morte de Sarah após inalar gás de desodorante, mês passado, no Distrito Federal, é o mais recente episódio de tragédias que afetam crianças e adolescentes como resultado de desafios nas redes sociais. Situações semelhantes são registradas em todo o mundo, evidenciando a fragilidade de jovens diante de conteúdos arriscados que circulam em plataformas como TikTok, Instagram e Discord. >
O impacto das redes sociais na saúde mental dos adolescentes é um problema que ultrapassa fronteiras. Em 2023 nos Estados Unidos, Jason Stevens, de 13 anos, morreu após tomar uma quantidade excessiva de remédio para alergia como parte de um desafio viral no TikTok. Na Argentina, uma menina de 12 anos perdeu a vida ao reproduzir um desafio semelhante. Já no Reino Unido, a adolescente Molly Russell, com 14 anos, tirou sua própria vida após passar meses consumindo conteúdos relacionados à depressão e automutilação no Instagram. As circunstâncias levaram a uma investigação oficial e levantaram questões sobre o papel das plataformas digitais na exposição de jovens a esse tipo de conteúdo. >
Segundo levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS), aproximadamente um em cada sete adolescentes no mundo enfrentam algum tipo de problema de saúde mental, sendo muitos deles relacionados ao uso excessivo das redes sociais. Na Austrália, a pesquisa realizada pela Comissária de Segurança Online indicou que 30% dos jovens já tiveram contato com conteúdo online prejudicial. >
Especialistas ressaltam a importância de uma regulação efetiva e precisa das plataformas online. A natureza dos algoritmos utilizados nessas plataformas, que tendem a promover conteúdos similares aos já consumidos pelo usuário, acaba por expor de maneira continuada os jovens a temas potencialmente nocivos e perigosos. >
Vanessa Cavalieri, juíza titular da Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, reforça a importância de levar o tema para o debate público: >
“É inaceitável que, no Brasil, as plataformas de redes sociais gozem de uma posição de privilégio que as coloca acima da lei. Enquanto qualquer empresa tem responsabilidade quando presta um serviço que gera riscos para o consumidor, as big techs são livres para hospedar conteúdos criminosos e oferecer propositalmente para crianças e adolescentes conteúdos nocivos. Precisamos urgentemente da regulação das redes, com a aprovação do PL 2628 na Câmara dos Deputados, e da certificação etária segura na internet, para evitar que casos como o relatado nesse livro continuem acontecendo rotineiramente”, afirma. >
Enquanto o debate avança, famílias, escolas e governos enfrentam o desafio de encontrar maneiras de educar e proteger adolescentes em um ambiente digital cada vez mais complexo e perigoso. Em 2023, a Universidade Federal do Ceará realizou uma pesquisa com 239 adolescentes com idades entre 12 e 17 anos e o resultado é estarrecedor: 23% afirmam já terem praticado algum jogo de asfixia e 21% afirmaram já terem praticado algum jogo de não-oxigenação. >
Desde 2014, ao menos 56 crianças e adolescentes brasileiros, com idades entre 7 e 18 anos, morreram ou sofreram lesões graves ao participarem de chamadas “brincadeiras perigosas”, segundo dados do Instituto DimiCuida. Entre os desafios mais comuns estão o "jogo do apagão", o "desafio do Benadryl" e o "blackout challenge" — práticas que envolvem sufocamento, ingestão exagerada de medicamentos ou uso de substâncias tóxicas. Muitas dessas ações são realizadas com o intuito de atrair visualizações, curtidas e engajamento em vídeos nas redes sociais, geralmente transmitidas ao vivo. >
Adolescência >
Recentemente, o tema ganhou força com a série britânica Adolescência, lançada na Netflix. Inspirada em episódios reais, a produção acompanha a trajetória de um garoto de 13 anos que se envolve em um crime trágico, motivado por uma rede complexa de violência virtual, isolamento e consumo de conteúdos extremos. A série, elogiada por psicólogos e educadores, provoca o debate sobre responsabilidade digital e os limites da exposição de crianças e adolescentes às dinâmicas das redes. >
Diante de tantos casos — nacionais e internacionais — o livro Aconteceu com Minha Filha e a série Adolescência não apenas retratam a gravidade da situação, como também contribuem para que esse tema deixe de ser tabu e se transforme em prioridade social. >
Ficha técnica: >
Título: Aconteceu com Minha Filha >
Gênero: Não Ficção/ Drama Real/ Alerta Social/ Relação Pais-Filhos >
Público-alvo: Pais, educadores, profissionais de saúde e todos que convivem com adolescentes >
Lançamento: maio/2025 >
Editora: Geração Editorial >
Formato: Impresso e e-book >
Páginas: 176 >
Preço: R$ 59,90 >
Entrevista – Paulo Zsa Zsa* >
*o autor, que assina sob pseudônimo, vai doar 100% dos direitos autorais desta edição ao Instituto Felipe Neto, que oferece atendimento psicológico e educação midiática a alunos de escolas públicas>
O livro é baseado na sua experiência com sua filha. Em que momento você percebeu que ela estava em perigo, e como foi o processo de identificar esse vício digital? >
Infelizmente, demorei muito para descobrir. Essa descoberta é contada no começo do livro, quando ela me procura no quarto 11h da noite, com os braços e pernas cortados, e me pede: - Pai, eu surtei! Me interna, eu surtei. Preciso ser internada! >
Naquele momento, depois de socorrê-la, eu tomei coragem e decidi vasculhar mais profundamente o celular da minha filha e descobri tudo o que ela estava passando. >
"Aconteceu com Minha Filha” traz um alerta forte para os pais. Que sinais você acredita que ainda passam despercebidos por muitas famílias? >
O grande problema não são os sinais. É o desconhecimento do que pode estar acontecendo. Porque se você não sabe o que está acontecendo, não vai identificar esses sinais. Eu mesmo sabia vagamente como funcionava o Discord, nunca tinha ouvido falar em Lulz e Panelas. A maioria dos leitores desta entrevista vai se perguntar: Que diabo é isso que ele está falando? Tá tudo explicado no livro, bem aprofundado e sem filtros. >
E o que são Discord, Lulz e Panelas? >
Temos um capítulo só sobre isso, mas vou tentar resumir. Discord é uma plataforma superpopular que gamers usam para jogar on-line e que hoje se transformou num chat gigantesco, sem nenhum tipo de monitoramento. Qualquer um pode criar a sua comunidade, chamada de Servidor, e tratar do que quiser dentro dela. É aí que surgem as “panelas” — grupos formados dentro de servidores maiores, um ambiente fértil para tudo o que não presta: pedofilia, automutilação, apologia ao nazismo... Isso tudo é exposto a crianças muito novas, como minha filha, de quem desconfio que, desde os nove anos de idade, já usava o Discord. >
Nada é mais nefasto nesse universo do que o Lulz. A palavra é uma corruptela de “Lol” (Laughing Out Loud = rindo alto), mas o sentido é bastante diferente. Podemos traduzir como “rir de uma pessoa”. Só que é muito pior. Fazer lulz é aceitar ser guiado (em uma transmissão ao vivo no Discord) por uma ou mais pessoas da panela e fazer tudo o que ela mandar. Nesse ambiente, de absoluto sadismo, todos são vítimas e vilões. Uma plateia alucinada (em grande >
maioria, de crianças e adolescentes) instigando, aos berros, outras crianças a se queimar, cortar e passar pelas situações mais abjetas. >
A história toca em temas delicados como saúde mental, manipulação online e automutilação. Como foi revisitar esses momentos para escrever o livro? >
Muitas coisas aconteceram à medida em que eu ia escrevendo. Minha filha aprontava alguma e eu corria para desabafar no computador. Foi um processo muito doloroso, mas que funcionou também como uma terapia, um desabafo. Com o livro, eu pude ordenar os pensamentos e entender mais detalhadamente o que estava acontecendo com a nossa família. >
Como pai, qual foi o momento mais difícil durante esse processo todo? >
Não sei se foi o mais difícil, mas com certeza o mais chocante. No dia em que estávamos tomando café da manhã e minha filha olha para mim e diz: - “Você pode esconder as facas, os fios. Mas e a rede da janela? Eu arranco e me jogo”. Fiquei em choque, principalmente pelo fato de estarmos num dos raros momentos de calmaria. Eu achava que Júlia estava melhorando e aquela frase, aquele desejo de se matar, me jogou no chão. Foi muito dolorido. >
Qual mensagem principal você espera que os leitores levem do livro? E que mudanças espera provocar nas famílias? >
A cada dia que leio a notícia de uma criança ou adolescente vítima da internet, tenho ainda mais certeza da urgência desse alerta. Torço para que meu livro chegue aos pais como uma forma de evitar tragédias. Sempre penso: se esse pai ou essa mãe tivesse lido, talvez tudo pudesse ser diferente. Se ele ajudar a salvar uma única vida, já terá cumprido seu propósito — e essa possibilidade já me deixa imensamente feliz. >
Quais foram seus principais erros nessa história? Dar um celular para sua filha antes do momento certo? >
São tantos erros, e todos poderiam ter sido evitados. Dar o celular foi um erro, mas não monitorar o que ela fazia acho que foi o maior erro que cometi. Eu não queria ser invasivo, pensava em preservar a privacidade dela. Hoje, vejo que isso é um absurdo. Eu deveria ter a senha do Discord, ter checado os grupos que ela estava inserida. Isso já ajudaria bastante. >
Com base no seu processo de reinvenção como pai, que conselhos você dá para pais e mães de crianças e adolescentes? >
Leia o livro, indique o livro para os amigos. Esse conhecimento precisa rodar. As pessoas precisam saber o que pode estar acontecendo na sua própria casa com seus filhos. E falo isso muito tranquilamente, sem nenhum interesse comercial. Estou doando 100% do que eu ganhar com a venda do livro para um instituto que dá apoio psicológico a crianças de escolas públicas, que estão passando por questões relacionadas à exposição midiática. Então vamos todos nos engajar nessa corrente e levar esse conhecimento adiante. Como diz Felipe Neto no prefácio: “Vivemos uma epidemia de crimes online”. Temos que nos unir para combatê-la e o conhecimento é uma arma poderosa que precisa ser usada. >