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Jorge Gauthier
Publicado em 1 de junho de 2024 às 05:00
‘Óleo de baixa qualidade’, ‘que não tinha sabor’, ‘que era comida de negros’ e ‘que só estragava a comida’. Essas foram algumas frases que ouvi de alguns turistas - especialmente do Sudeste - durante a semana que estive em Arraial d’Ajuda, distrito de Porto Seguro na Bahia, visitando restaurantes. Conversei com 15 turistas - a maioria do eixo Rio/São Paulo - e questionei se eles já haviam provado pratos com dendê e o que eles haviam achado do sabor. Destes, somente três deram declarações positivas sobre o óleo.
Ao contrário dos profissionais dos restaurantes que respeitam o ingrediente, as frases de alguns visitantes reforçam estereótipos criados historicamente com a nossa culinária e que podem ser considerados racismo culinário.
“A partir das frases apresentadas, podemos, sim, ter relatos de racismo culinário onde o ingrediente identitário de nossa culinária está associado a aspectos negativos. Chega a ser engraçado o relato de que o azeite de dendê 'não tem sabor'. Sua presença em um prato é marcante e inconfundível, seja na cor dourada, no cheiro e no sabor. Porém, ele é comumente associado às religiões de matriz africana, o que pode reforçar esta repulsa ao ingrediente, sob as mais diversas justificativas, como a redução da qualidade do prato ou a sensação de saciedade (ou sensação de peso) decorrente dele. Ora, a comida baiana tem o azeite de dendê como ingrediente principal, assim o seu sabor também está associado ao sabor do azeite, e sua substituição por qualquer outro ingrediente faz com que seja outro prato, e não mais aquele de origem”, afirma Fabiana Paixão Viana, doutora em Antropologia, com estudos na Antropologia da Alimentação.
No candomblé, o dendê tem importância vital para alguns orixás, a exemplo de Iansã. Mas, existem os orixás que não podem usar o azeite de dendê como é o caso de Oxalá.
Gastroenterologista do Itaigara Memorial, Rebeca Esteves de Castro explica que, por ser rico em ácidos graxos, o dendê pode causar ‘desconforto’ em indivíduos que não estão acostumados a consumir esse tipo de gordura. “Além disso contém beta-caroteno, que pode ter efeitos laxativos em algumas pessoas sensíveis. Os óleos ajudam na lubrificação das paredes intestinais acelerando o trânsito intestinal favorecendo também a defecação”.
A nutricionista Isabela Ribeiro, que atua na área clínica e fitoterápica, explica que o azeite de dendê contém vitamina E, antioxidantes e carotenoides, que podem ter benefícios para a saúde da pele e dos olhos. O óleo, que é extraído do dendezeiro, tem a mesma quantidade de calorias do azeite de oliva. “O dendê deve ser consumido com moderação, pois possui o teor muito alto de gordura saturada, em relação a quantidade e frequência. Entretanto, em 100 ml o azeite de dendê tem 884 calorias e 100 gramas de lipídio, a mesma quantidade encontrada no azeite de oliva extra virgem, por exemplo”, destaca a nutricionista.
A Bahia é um estado plural, e sua culinária segue a mesma lógica. Apesar da comida a base de azeite de dendê ser a mais identitária, segundo Fabiana Paixão Viana, não podemos desconsiderar outras comidas que também fazem parte das mesas dos baianos, principalmente quando analisamos diferentes cidades e/ou regiões da Bahia.
“A ‘comida baiana’, aquela com azeite de dendê, não está presente cotidianamente nas mesas de todos os baianos; por aqui, em Salvador, tendemos a comer a combinação arroz, feijão, carne (bovina, frango, suína e, mais raramente, peixe) e verdura. Isso é tão marcante, que exceto em pontos turísticos, não é comum encontrarmos restaurantes que comercializem caruru e vatapá, por exemplo, sem ser nas sextas-feiras. Assim, apesar de ser uma região turística, a ausência de pratos à base de azeite de dendê em Arraial d’Ajuda não me causariam total espanto, visto que seguramente existem outros pratos denominados 'típicos' ou 'baianos' em seus cardápios, com o uso de ingredientes locais, como frutas, bebidas e temperos”, pontua.
No entanto, conforme Fabiana, a justificativa apresentada para esta ausência demonstra, por um lado, uma preocupação dos donos dos restaurantes em atender os gostos de sua clientela e, por outro, a reprodução, já disseminada por outros estados brasileiros, da ideia de que a comida preparada com azeite de dendê é pesada e indigesta, ainda que tenha como base um óleo vegetal e, frequentemente, peixes ou frutos do mar, destaca a especialista.
A antropóloga ressalta que culturalmente o dendê faz parte de nosso cotidiano, sobretudo com os tabuleiros das baianas e o tradicional consumo da “comida baiana” na Sexta-Feira da Paixão. “Confesso que me causa estranhamento estas alterações na culinária típica e tradicional visando exclusivamente “agradar o paladar dos turistas”.
"Inquestionavelmente, as alterações nas culinárias típicas são relativamente comuns, sobretudo na atualização das formas de preparo (como a substituição dos pilões manuais por equipamentos elétricos) e ingredientes (com a adequação das receitas de acordo com necessidades de saúde dos comensais e prescrições médicas, como celíacos, por exemplo), porém, a retirada do azeite de dendê nas comidas típicas baianas atinge a identidade de um povo”, avalia.
A grande “marca” da moqueca baiana é justamente a presença do azeite de dendê, em oposição, temos a moqueca capixaba que não tem o dendê na lista de ingredientes. Não se trata de qual é melhor, mais saudável ou mais leve. Ambas são moquecas e são consideradas pratos-totem de seus estados. "A retirada do azeite de dendê dos pratos tipicamente baianos, principalmente naqueles comercializados em restaurantes, cujo argumento se resume a adequação ao paladar do turista, contrapõe ao viés cultural e religioso do ingrediente que está associado a identidade do povo baiano e as religiões de matriz africana", finaliza Fabiana.
Vai lá!
Arraial d’Ajuda, distrito de Porto Seguro
Habitantes: 16 mil
4 milhões de turistas visitam a cidade de Porto Seguro
Como chegar:
Aeroporto mais próximo de Arraial d'Ajuda é o Aeroporto de Porto Seguro (BPS)
Saindo de Porto Seguro pega-se uma balsa até Arraial
Vale a pena conhecer: praias dos Pescadores, do Apaga Fogo, de Taípe e Pitinga; Beco das Cores e Rua Mucugê.
*o jornalista viajou a convite da Booking.com