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Thais Borges
Publicado em 18 de agosto de 2024 às 05:00
Foi da autora de Um Defeito de Cor, Ana Maria Gonçalves, um dos ensinamentos que a editora-executiva do Grupo Editorial Record, Livia Vianna, levou para a vida. “Aprendi a importância de não precisar estar fazendo algo novo o tempo todo. As pessoas cobram muito por um novo livro, mas ela não tem essa pressa. Ela reescreveu o livro diversas vezes”, explica Livia. >
Considerado uma das maiores obras da literatura brasileira contemporânea, Um Defeito de Cor foi publicado originalmente em 2006 e, desde então, a escritora não lançou novos livros. Ainda assim, Livia traz um currículo que vem tanto com clássicos quanto com novidades. Só em agosto, ela editou cinco novos livros, incluindo três relançamentos de Ferreira Gullar, um da antropóloga Debora Diniz e outro que é um diálogo entre o intelectual Noam Chomsky e o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica. >
Com 16 anos no mercado editorial, Livia é editora-executiva do Grupo Record desde 2018. Desde então, é a responsável por comandar editoras como a Civilização Brasileira, a José Olympio, a Paz & Terra e a Rosa dos Tempos. >
Depois da crise das livrarias nos últimos anos, ela conta que o mercado conseguiu se recuperar. “O que a gente não recupera é a presença física de livrarias, porque isso traz uma mudança profunda na forma de escolher livros, no ato de procurar um livro pela lombada”, conta ela, que é formada em Letras e em Jornalismo pela PUC-Rio. Para Livia, o sucesso de eventos como a Bienal do Livro da Bahia mostra que jovens estão lendo até mais do que os adultos. >
Ao CORREIO, ela falou sobre temas como a rotina do mercado e a influência do TikTok e das plataformas digitais para transformar um livro em bestseller. Neste momento, o título que talvez seja o maior exemplo disso está com um filme homônimo em cartaz nos cinemas: É Assim que Acaba, sucesso de Colleen Hoover que voltou a ser o livro mais vendido na Amazon Brasil esta semana (depois de dominar o ranking nacional por dois anos). >
“É difícil hoje ver uma pessoa que lê um livro e não posta. Isso já gera um conteúdo que não é pago. É orgânico. E o grande boom do Booktok vem de ser orgânico”, acrescenta. Além de ter editado Um Defeito de Cor, Livia é a editora de nomes como bell hooks*, Michel Foucault, Pablo Neruda, Rachel de Queiroz e Carlos Drummond de Andrade. >
Confira a entrevista na íntegra>
Estamos vindo de movimentos recentes que afetaram muito o mercado editorial, a exemplo do fechamento de livrarias importantes pelo país. Conseguimos nos recuperar? Qual é o seu diagnóstico sobre o mercado hoje? >
Em termos de números, está recuperado. O que a gente perdeu, por exemplo, com a Saraiva e de redes como a Cultura, a gente recuperou com a força de sites poderosos vendendo muito bem. O que a gente não recupera é a presença física de livrarias, porque isso traz uma mudança profunda na forma de escolher livros, no leitor final, naquela ocupação entre prateleiras, no ato de procurar um livro pela lombada. Isso ainda não recuperamos. Em vendas, o mercado se recupera porque a venda está funcionando, mas existe uma experiência que se perdeu e a gente ainda tem que batalhar para ter de volta. >
Desde a pandemia, vimos a ascensão do Booktok, nicho literário do TikTok. Como você percebe esse fenômeno? Ainda estamos vivendo um momento em que só os sucessos do TikTok se tornam bestsellers ou já temos uma estabilização do alcance dessas plataformas? >
Esse alcance do Booktok ficou muito poderoso, mudando a carreira de livros estrangeiros ou brasileiros. Mas não é só o TikTok. O Instagram virou uma plataforma de indicação de livros. As pessoas estão criando pastas do que comprar ou ler - pessoas comuns, que não são do mercado editorial. É difícil hoje ver uma pessoa que lê um livro e não posta o livro. Isso já gera um conteúdo que não é pago. É orgânico. E o grande boom do Booktok vem de ser orgânico. >
Isso acontece também no Instagram. Menos no Twitter, mas acontece também. Acho que hoje em dia é difícil experienciar uma coisa sem botar na rede, seja uma viagem, uma ida a um passeio, seja uma leitura de um livro. Acho que isso também, de alguma forma, está impactando as escolhas das pessoas. Claro que influenciadores e formadores de opinião têm um impacto maior, mas o pulo do gato é esse.>
Nós tivemos uma Bienal do Livro da Bahia lotada todos os dias em abril. Como você vê os níveis de leitura dos brasileiros - em especial, dos mais jovens? O estereótipo de que brasileiros não leem continua sendo a máxima ou você vê mudanças nesse cenário? >
Acho que não tem como acreditar nessa máxima quando você vê eventos como a Bienal da Bahia lotada, a do Rio ano passado também lotada a ponto de ser até incômodo de andar, principalmente com o público jovem lotando pavilhões. Esse ano, tem Bienal de São Paulo (de 6 a 15 de setembro), também com grande expectativa de público. Eu nem trabalho com esse nicho, lido mais com livro adulto, mas nosso selo jovem é um dos maiores faturamentos do grupo. >
Nesse tipo de feira, você vê que pessoas ficam carregadas (de livros), passa um autor e a turma grita. Tem gente que vai fantasiada, quando é livro de fantasia. É um povo muito apaixonado que vai comprar todo tipo de livro. Se uma autora de fantasia lança um livro, depois uma versão capa dura, depois uma versão estendida, eles compram. Não vejo crise na leitura dos jovens, pelo contrário. Eles estão lendo talvez até mais do que os adultos. >
O grupo Record domina os mais vendidos de ficção há três anos com os mesmos nomes: Colleen Hoover (de É Assim que Acaba) e Carla Madeira (de Tudo é Rio). Na sua avaliação, o que explica o fenômeno de autoras como essas duas?>
São ficções que te levam para uma outra história. Elas te enredam numa história que você não lembra de sua própria vida. Tanto Colleen Hoover quanto Carla têm o storytelling, contam uma história de uma forma muito poderosa e te levam para outro lugar de uma forma que você não consegue parar de ler. Todos os livros das duas são page-turner (livros envolventes que você não para de virar as páginas), pegam o leitor. >
Você está à frente da Rosa dos Tempos, que foi a primeira editora feminista do Brasil e que tem nomes como bell hooks, Debora Diniz e Marcia Tiburi no catálogo. Livros feministas são melhores aceitos hoje do que já foram no passado? >
Acho que teve um boom de aceitação que nem é de agora. O boom foi quando o selo foi retomado. O selo foi inaugurado nos anos 1990, por Rose Marie Muraro, uma feminista de outra época, mas foi descontinuado por volta dos anos 2000 e 2001, por desinteresse mesmo. As pessoas pararam de procurar aquele tipo de livro. O feminismo caiu no ostracismo, ninguém falava. Mas quando foi por volta de 2016, 2017, o feminismo vem num onda forte. A gente retoma a Rosa dos Tempos mediante aquela onda. Convidei Marcia Tiburi para fazer o primeiro livro do selo, para excursionar com ela apresentando livros que viriam e apresentando o selo. A aderência foi muito boa. Foi em janeiro de 2018 e o livro de Marcia, Feminismo em Comum, ficou semanas na lista da Veja. >
A gente fez uma turnê que ia além das capitais, falando de livros que viriam, como o de bell hooks, O Feminismo é para Todo Mundo. Hoje, ela é publicada até por outras editoras. Trouxemos O Mito da Beleza (Naomi Wolf) e Mamãe e Eu e Mamãe (Maya Angelou). Ali, a gente viveu o auge de vendas do tema. Não só a Rosa dos Tempos estava vendendo bem, mas a lista (de mais vendidos) tinha a presença de nomes como Angela Davis. Teve um boom que a gente viveu durante um bom tempo, mas que agora, talvez de 2022 para cá, a gente não está vendo tanto, talvez porque tenha muito mais livro. Muitas editoras estão publicando mais sobre feminismo, então acho que deu uma naturalizada no tema. Ficou uma coisa do dia a dia. >
Por que bell hooks demorou a ser publicada no Brasil?>
Não sei porque demorou, mas acho que demorou para a gente fazer o que ela propõe, que é olhar para o feminismo interseccional, olhar para a necessidade de todas, as especificidades e a gente realmente entender que estamos juntas nessa luta. Durante muito tempo, teve uma segregação grande no feminismo, entre mulheres brancas, negra, cis e trans. bell hooks prega essa intersecção, que todas fiquem juntas contra o patriarcado. Acho q custou ter esse olhar,>
No caso de Debora Diniz, você editou recentemente Carta de uma orientadora (lançado este mês), que é um livro sobre o mundo acadêmico escrito em uma linguagem acessível. Qual é a maior dificuldade em trazer uma obra sobre pesquisa para o grande público?>
Debora é muito curiosa. Gosto muito de trabalhar com ela porque ela tem um vigor muito grande, mas é uma das pessoas mais doces que conheço. Ela só lida com temas pesados, mas com muita doçura. Ela consegue, nesse livro, pegar um assunto que não tem nada de afetuoso e carinhoso, que é a escrita acadêmica, e escreve um livro muito acadêmico sobre como essa escrita abraça a orientanda. Não necessariamente ela está falando de tese, mas da escrita acadêmica como um todo. Curiosamente, ela faz o livro todo no feminino. Ela fala o tempo todo para mulheres, que, por si só, é um ato político. A gente coloca sempre o sujeito comum no masculino e ela usa o contrário. >
Você editou obras de autores muito importantes, como Foucault, Neruda e Um defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves. O que aprendeu com cada um deles? >
Não tem uma coisa tão geral, mas acho que aprendi a realmente extrair de cada um o que cada um pode trazer. São nomes muito diversos. Com Ana Maria Gonçalves, eu aprendi a importância de não precisar estar fazendo algo novo o tempo todo. Ela lançou Um Defeito de Cor e as pessoas cobram muito um novo livro, mas ela não tem essa pressa. Ela está produzindo outras coisas. Ela reescreveu o livro diversas vezes. Ficou na gaveta, reescreveu quatro, cinco vezes. Mudou, retirou capítulo, adicionou. >
Já com a autora Elisama Santos, que é baiana, é o contrário. Ela é psicanalista e se aventurou na ficção, mas, ao contrário de Ana Maria, ela escreve muito rápido. Os personagens ganham uma vida que ela não tem nenhum controle. Com ela, eu aprendi que quando você começa a trabalhar no livro, você está aberta a tudo. Essa é realmente a grande maravilha do meu trabalho.>
Como vocês escolhem os livros que serão lançados pela editora? >
Eu comecei como assistente editorial, que é quem está assistindo ao livro e você se torna gerente ou coordenadora da produção. Em geral, as pessoas começam na produção do livro e depois vão para a aquisição. Hoje, como executiva, sou tanto de aquisição quanto de produção. Quem escolhe o que vai entrar na Record é a editora-executiva, mas tem editoras que chamam de editor de aquisição.>
Para contratar, tem que entender o que as pessoas querem ler. Não adianta a gente buscar só aquilo que a gente gosta. Tem que entender o que o que o momento está pedindo, seja de questões ambientais, seja de legislação, seja politicamente, nos livros de não ficção. Acabamos de lançar um livro Chomsky e Mujica: Sobrevivendo ao século 21, em que eles estão debatendo o mundo no nosso tempo através do olhar de dois militantes importantes. Faz sentido publicar agora. >
Quais são os maiores desafios para lançar novos autores hoje? >
A maior dificuldade, muitas vezes, é a própria distribuição, porque a gente tem espaços muito limitados, seja nos estoques dos sites, seja em livrarias. Como convencer que aquele nome é aquilo tudo se ela (a responsável pela venda) nunca ouviu falar daquela pessoa e as outras editoras- e até você mesmo - estão publicando outros nomes conhecidíssimos? Depois que dá certo, todo mundo quer, mas aquela aposta é realmente um tiro no escuro. Tem que sair por aí batendo de porta em porta. A imprensa vai dar espaço a uma pessoa que ninguém conhece? O desafio realmente é a gente convencer de que essa pessoa não é conhecida, mas deveria ser. É uma coragem das editoras e uma necessidade também, ou você vai ficar sendo só as mesmas pessoas. >
Este mês, três livros de Ferreira Gullar editados por você estão sendo relançados. Em que é diferente esse retorno a obras que já tinham sido lançadas antes? >
A gente tem que pensar em novidade. Um dos livros que a gente está trazendo, Um Rubi no Umbigo, foi a primeira peça que ele escreveu sozinho e só tinha sido publicada por uma editora pequena, em 1978. Para fazer essa edição, a gente conseguiu acesso a um dos primeiros exemplares da obra, em que ele (Gullar) fez alterações à mão. >
Ele mudou pequenas coisas, termos, palavras. E ele simplesmente muda o final. A gente incluiu o exemplar e você tem acesso à caligrafia de Gullar. É uma reprodução fac-similar igualzinha ao exemplar que ele tinha em casa. Parece até rasurada, de tão bem feita. >
O outro livro dele, Romances de Cordel, a gente mudou totalmente a capa. Traz uma referência ao próprio cordel. No terceiro livro (o infantil A menina Claudia e o rinoceronte), mudamos a capa para ficar mais dinâmica. Ela tinha uma capa mais estática. Ali, não tinha como mudar muito porque, além do texto, ele fez as ilustrações. Mas a gente conseguiu que ela fosse mais atraente para as crianças hoje em dia. Ferreira Gullar é sempre Ferreira Gullar, mas a gente sempre pode pensar o que pode trazer de novidade para fazer aquele livro mais forte ainda. >
O que você pode adiantar sobre a nova coleção de feminismos decoloniais com Djamila Ribeiro?>
Ela está escrevendo o primeiro nesse momento - Feminismos do Sul Global. Ele vai ser não só o primeiro, mas a base da coleção, e vai falar sobre a importância de nós, do Sul global, voltarmos nosso olhar para nós mesmas. Para o Brasil, muitas vezes, as (feministas) mais importantes são americanas como bell hooks e Angela Davis. Por muito tempo, foram as francesas. Sempre são do Norte global, mas as preocupações delas são diferentes e claro que as lutas vão ser diferentes. Essa coleção vai nos fazer mudar o olhar. O segundo livro é o Feminismo Dalit, que vai falar de uma realidade muito parecida com a nossa, embora muitas vezes o brasileiro se ache mais distante da Índia do que dos Estados Unidos. Mas a gente tem muita semelhança com a Índia, principalmente pela desigualdade social. >
Como você entrou no mercado editorial? Que dicas daria para quem se interessa pela área?>
É muito importante ler. Parece óbvio, mas muitas vezes as pessoas querem entrar sem realmente ler. É muito importante ler - e ler de tudo, ficção e não ficção. A não ficção vai nos trazer olhares importantes que outras mídias não vão nos ensinar. Tem que ser curioso com os bastidores do livro. Quando comprar um livro, é bacana ver quem traduziu, quem revisou, como é feito. Eu sempre li pensando muito nisso. Tem que pensar também no tanto de trabalho no entorno daquele livro. Nem tudo que o autor de ficção escreve é inventado. Ler não é só ler, mas ler com esse olhar aguçado de curiosidade. >
*O nome artístico de bell hooks é escrito em letras minúsculas por decisão da escritora.>