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Da Redação
Publicado em 25 de agosto de 2021 às 16:26
- Atualizado há 2 anos
Conteúdo verificado: Vídeo postado no TikTok mostra uma advogada afirmando que o STF e o TSE querem “impedir que o povo cristão seja representado por seus irmãos na fé”. Antes, dois apresentadores afirmam que há um projeto para “criminalizar aqueles que propagam a palavra de Deus”. É enganoso um vídeo que circula nas redes sociais que afirma que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) teria “acabado de inventar o crime de abuso de poder religioso” e que, com isso, poderia “cassar todos os candidatos cristãos que forem eleitos”. Essas alegações são feitas na gravação por uma advogada e ex-candidata a vereadora, mas contêm imprecisões.>
A tese, aventada pelo ministro Edson Fachin durante um julgamento do TSE em agosto de 2020, não visava impedir a presença de pessoas de nenhuma crença na política. Ela pretendia incluir o abuso de poder religioso entre os tipos de conduta que podem afetar a igualdade entre candidatos numa eleição – atualmente, são considerados os abusos econômico e de autoridade, além do uso indevido dos meios de comunicação. Sem nenhum indicativo de data, o vídeo dá a entender que o tema é atual.>
O conteúdo também é enganoso porque introduz um trecho de um programa jornalístico fora de contexto. Nele, os apresentadores falam de uma “nova lei que entrará em vigor” e que poderia ser “uma caçada aos cristãos”, como se eles se referissem à discussão no TSE. No entanto, eles falavam de uma legislação na Bolívia.>
O responsável pela publicação do vídeo no TikTok foi procurado pelo Comprova e afirmou não ter dito que o projeto ainda estava em discussão, mas que apenas quis abrir os olhos dos cristãos para o que os magistrados querem fazer. A advogada que aparece no vídeo, Lenice Moreira, também foi procurada, mas não respondeu. Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações, e que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor.>
Como verificamos? Buscamos no Google pelo material original a partir de palavras-chave ditas pelas pessoas no vídeo. Isso nos levou a duas checagens, do Boatos.org e do Coletivo Bereia, que já indicavam os links originais.>
Para compreender o contexto original das discussões sobre o abuso de poder religioso, consultamos notícias no site da justiça eleitoral (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui).>
Consultamos informações sobre Lenice Moura na página DivulgaCandContas, do TSE. Também buscamos o seu contato por meio do seu registro na OAB do Rio Grande do Sul. Entramos em contato com ela por meio de sua página no Facebook.>
No perfil do Tik Tok, encontramos o perfil do Instagram do homem que compartilhou o vídeo com maior viralização. No Instagram, ele divulga o próprio telefone. O Comprova o procurou usando o WhatsApp e ele respondeu por mensagem de áudio.>
Verificação Tese de abuso de poder religioso foi rejeitada Em junho de 2020, o TSE começou a julgar um recurso do Ministério Público Eleitoral que pedia a cassação do mandato de uma vereadora de Luziânia (GO), eleita em 2016. No pedido, a promotoria narrava que ela teria cometido abuso de poder religioso ao se reunir com pastores na catedral da Assembleia de Deus da cidade para pedir votos. A acusação é de que ela teria usado sua condição de autoridade religiosa para influenciar a escolha dos eleitores. Quem organizou o evento foi o pai dela, pastor e dirigente da igreja no município.>
No caso específico da vereadora, o ministro-relator do caso, Edson Fachin, avaliou que não se deveria cassar o mandato porque não havia provas suficientes de que ela teria cometido abuso de poder. No entanto, frisou que a Justiça Eleitoral deve impedir que “qualquer força política” possa coagir moral ou espiritualmente os cidadãos e propôs a inclusão de investigação do abuso de poder de autoridade religiosa no âmbito das Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aijes).>
“A imposição de limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade”, defendeu Fachin. Ele argumentou que há jurisprudência internacional para isso e que princípios constitucionais já garantiriam a pluralidade política e a liberdade religiosa.>
Atualmente, os três tipos de abuso de poder presentes na Lei das Inelegibilidades (64/90) são o abuso de poder econômico, de autoridade (político) ou a utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social. São condutas que se considera que possam afetar a igualdade na disputa entre candidatos em uma eleição, segundo o TSE. A proposta de Fachin não era de proibir a candidatura de pessoas ligadas a uma fé específica, mas, sim, coibir o que ele acreditava poder ser configurado como um tipo a mais de abuso.>
O tema atraiu a atenção e a mobilização de grupos evangélicos. O ministro Fachin chegou a debater virtualmente o assunto com parlamentares da bancada evangélica e com o Instituto Brasileiro de Direito e Religião.>
Em agosto do mesmo ano, os demais ministros do TSE concordaram com a absolvição da vereadora. Quanto à possibilidade de punir o abuso de poder religioso, todos divergiram do relator. O ministro Alexandre de Moraes contestou que “não se pode transformar religiões em movimentos absolutamente neutros sem participação política e sem legítimos interesses políticos na defesa de seus interesses, assim como os demais grupos que atuam nas eleições”. Como exemplo, citou grupos sindicais e empresariais.>
O presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que a legislação eleitoral já proíbe o abuso de poder religioso ao vedar doações a candidatos e partidos por instituições religiosas e propaganda política em templos. No entanto, considerou que o caso julgado não possuía ligação com essas condutas.>
Vídeo sobre a Bolívia O vídeo verificado aqui começa com dois apresentadores de um telejornal falando sobre uma proposta que seria “uma verdadeira caçada aos cristãos”. O conteúdo tem um corte antes e depois, que torna difícil saber a que projeto eles estão se referindo. Usando a busca reversa de imagens do Google, porém, foi possível encontrar o vídeo completo postado em um canal do YouTube em janeiro de 2018. A reportagem de 2 minutos e 48 segundos não trata do Brasil, mas de uma tentativa de reforma no código penal da Bolívia, que considerava como análogo ao tráfico de pessoas o “recrutamento para a participação em conflitos armados ou organizações religiosas ou cultos”.>
Naquele mesmo mês, o governo boliviano voltou atrás sobre o artigo que foi alvo de polêmicas. Como o Boatos.org mostrou, a reportagem já havia ressurgido em julho de 2020 como peça de desinformação.>
Como o vídeo completo tem a entrevista de um pastor brasileiro que atua na Bolívia, Eder Luís, da Igreja Internacional da Graça de Deus, buscamos no Google o nome dele associado a palavras-chave como “Bolívia” e “código penal”. Encontramos o site Gospel+, que numa postagem de janeiro de 2018 traz o mesmo vídeo. Segundo o site, a entrevista do pastor foi dada ao “Jornal da RIT TV”.>
Assim, descobrimos que se trata do “Jornal das 22”, que vai ao ar pela RIT TV de segunda à sexta-feira, às 22h30. Os apresentadores são Alexandre Giachetto e Beatriz Do Vale (Aqui, é possível ver o print do vídeo verificado e o material promocional do jornal).>
Quem é Lenice Moura? Segundo o coletivo Bereia, o vídeo que está no TikTok foi originalmente postado no canal da própria Lenice Moura. O link publicado pelo site, porém, mostra que o conteúdo não está mais disponível. Pesquisando o nome dela no YouTube, achamos um canal com apenas dois vídeos; ambos com críticas aos ministros do STF.>
A pesquisa no YouTube também retornou o link de uma live feita pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), com candidatos a vereador nas eleições de 2020. No vídeo, o parlamentar apresenta Lenice como candidata por Natal (RN).>
Consultamos então o DivulgaCandContas, aplicativo da Justiça Eleitoral. Lenice Silveira Moreira de Moura é advogada, natural de Campinas (SP), e nascida em 29 de dezembro de 1972. Ela se declarou branca e casada ao registrar sua candidatura. Não indicou nenhum bem no seu nome. Ao todo, arrecadou R$ 20.210,92 ao longo da campanha de 2020, tendo doado, ela própria, R$ 2.900,47 desse valor. Lenice era filiada ao PRTB, teve 1.088 votos e acabou não sendo eleita. Como o PRTB não elegeu nenhum vereador, também não ficou na suplência.>
Em seu perfil no Facebook, ela defende Bolsonaro, o voto impresso e já tirou foto abraçando a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, quando esta esteve em Natal. No Cadastro Nacional de Advogados (CNA), mantido pela OAB Nacional, ela aparece com o registro 39459/RS.>
Segundo o currículo Lattes, Lenice se formou em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul. Pela mesma instituição, fez um mestrado em Integração Latino-Americana. Depois, concluiu o doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).>
Ela diz que atua nas áreas tributária e empresarial. Até a última atualização do currículo, em setembro de 2018, era professora do Centro Universitário do Rio Grande do Norte (UNIRN) e da Faculdade Estácio de Natal.>
Vídeo da advogada também é antigo Na página do Facebook de Lenice, encontramos o vídeo original, publicado em 1º de julho de 2020. Na época, o TSE discutia a adoção do “abuso de poder religioso”. Ele tem 55 segundos e não inclui o trecho do telejornal.>
Ela repostou o mesmo vídeo três dias depois, comemorando que ele estava viralizando. Essa segunda versão tem um minuto e sete segundos, já incluindo o trecho do programa da RIT TV. Na legenda, ela afirma “Vejam esse telejornal”. Nessa data, o caso ainda não havia sido decidido pelo TSE.>
Em 23 de agosto de 2021, mais de um ano após o tema ter sido rejeitado pelo TSE, ela voltou a republicar o vídeo, dessa vez com uma convocação para que os seguidores participem dos atos convocados para o dia 7 de setembro.>
Justificativa No TikTok, um homem chamado Allan Fernandes publicou o conteúdo verificado aqui. Ele se descreve como “polêmico” e “patriota”. A partir dele, o conteúdo foi parar novamente no Facebook e no YouTube. A conta dele na rede social de vídeo remete para o perfil do próprio no Instagram, onde conseguimos achar o seu número de celular.>
Por áudio, ele disse ter informado nos comentários que o debate era antigo e explicou porque compartilhou o vídeo mesmo assim. “Se você analisar direitinho, esse vídeo eu coloquei não dizendo que é um projeto que está em aberto. Foi simplesmente para abrir os olhos da população desse pessoal que quer mandar em tudo, entendeu? Foi só um alerta para abrir os olhos para o que eles querem fazer, o que eles propõem fazer para gente, principalmente o povo cristão”, disse.>
“E se você analisar direitinho todo o histórico de comentário, você vai ver lá que eu coloquei que foi em aprovação, mas ele não foi aprovado. Mas é um alerta para abrir os olhos da população. Não coloquei dizendo que é um projeto que vai ser votado”, prosseguiu.>
Procurando pelos comentários da publicação verificada, achamos uma mensagem em que Allan diz que a proposta de Fachin “Graças a Deus foi prorrogada, para melhor análise, mas nosso Deus não vai deixar, ser aprovada!”. Ele completa: “Postei aqui para abrir os olhos do povo cristão”. O comentário foi feito no dia 18 de agosto; antes, portanto, de o Comprova entrar em contato com Allan.>
Por que investigamos? Em sua quarta fase, o Comprova checa conteúdos enviados por leitores que falem da pandemia de covid-19, de políticas públicas ou eleições. Só checamos conteúdos que tenham atingido um alto grau de viralização. O vídeo com alegações enganosas sobre a discussão do abuso de poder religioso teve ao menos 29.583 reações no TikTok.>
Este conteúdo também já foi checado pelo Coletivo Bereia.>
A desinformação sobre eleições mina a confiança da população e desencoraja a participação no processo democrático. O Comprova já mostrou que é enganoso que o voto impresso já estaria previsto em lei e que é falso que urnas brasileiras teriam sido hackeadas nos Estados Unidos.>
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.>
*Esta checagem foi postada originalmente pelo Projeto Comprova, uma coalizão formada por 33 veículos de mídia, incluindo o CORREIO, a fim de identificar e enfraquecer as sofisticadas técnicas de manipulação e disseminação de conteúdo enganoso que surgem em sites, aplicativos de mensagens e redes sociais. Esta investigação foi conduzida por jornalistas do Jornal do Commércio e Estadão, e validada, através do processo de crosscheck, por seis veículos: CORREIO, Alma Preta, Folha de S.Paulo, UOL, Correio de Carajás e SBT.>