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Andre Stangl
Publicado em 22 de setembro de 2024 às 05:00
Quando o som de uma festa de vizinhos invade o que deveria ser o nosso momento de descanso, em um domingo ou feriado, até tarde da noite, e com volume suficiente para acabar com a tranquilidade, somos lembrados da linha tênue e, muitas vezes, confusa, que divide o espaço público e o privado. E essa não é uma questão de gosto, ou desgosto musical. Não importa o estilo, pode até ser uma sinfonia de Beethoven. Quando queremos apenas um pouco de silêncio, a única melodia que importa é a harmonia do respeito. >
O direito ao lazer de um indivíduo ou grupo não deveria entrar em conflito com o direito à paz de outras pessoas. No entanto, a linha entre o que pertence ao plano individual e o que diz respeito ao interesse público nem sempre é fácil de discernir. No cotidiano, situações como o excesso de barulho dos vizinhos já tornam essa separação difícil. Na esfera digital, essa questão se torna ainda mais complexa, borrando distinções que antes pareciam evidentes. >
Um exemplo disso é o debate sobre liberdade de expressão em ambientes digitais, tema que já abordei em uma coluna anterior. Um caso recente que ilustra essa tensão é o bloqueio da plataforma X (antigo Twitter) para usuários no Brasil. Uma situação em que o interesse de uma empresa privada pode causar um “barulho” capaz até de abalar a tranquilidade da democracia de um país. Isso mostra como o que parecia ser um espaço privado pode rapidamente se transformar em uma questão de ordem pública.>
Para compreender a complexidade do cenário atual, em que o borramento das fronteiras entre o privado e o público se intensificou, vamos precisar de uma perspectiva histórica. Assim, vamos conseguir visualizar como esses dois domínios, que pareciam claramente separados, são profundamente interligados e sujeitos a tensões constantes. Essa sobreposição de direitos não é uma invenção moderna, mas um desafio que permeia a história da sociedade ocidental.>
Em seu famoso e subestimado livro "Sapiens: uma breve história da humanidade", Yuval Harari explica como, ao longo do tempo, as sociedades têm navegado por essas tensões, evidenciando a habilidade dos seres humanos de criar ficções sociais que moldam as normas de convivência. Conceitos como "espaço privado" e "espaço público" podem variar conforme as culturas e épocas. Nas sociedades de caçadores-coletores, por exemplo, essas linhas eram mais fluidas, já que a sobrevivência dependia da cooperação e da partilha de recursos. Com o surgimento das cidades, e principalmente das moradias individuais, essas distinções se consolidaram, mas sempre permaneceram dinâmicas.>
Segundo Yuval, o crescimento das civilizações urbanas intensificou a divisão entre os espaços públicos e privados, mas essa fronteira continua sujeita a novas interpretações. A tensão entre o direito ao lazer e o direito à tranquilidade é um exemplo contemporâneo dessas ficções sociais que, ao mesmo tempo que promovem a convivência organizada, geram conflitos inevitáveis. Essas normas refletem como os seres humanos constantemente negociam a organização da vida social. No contexto das comunidades tradicionais não teria muito sentido pensar em uma festa que não envolvesse todos os membros da comunidade.>
Esses dilemas remetem ao papel central da cultura na definição do comportamento humano. Em sociedades modernas, os direitos individuais e as liberdades são construções culturais que possibilitam a coexistência. No entanto, a aplicação prática desses direitos é constantemente debatida, já que as fronteiras entre o público e o privado estão em contínua transformação. >
Para Yuval, a Revolução Industrial transformou profundamente as estruturas sociais, deslocando o papel da família (e da comunidade local) para o Estado e o mercado. Antes, a família desempenhava funções econômicas, de bem-estar e segurança, mas, com a ascensão do mercado e do Estado, muitas dessas responsabilidades foram transferidas para essas instituições. Essa mudança ajudou a promover o individualismo, permitindo que as pessoas se tornassem mais independentes de suas famílias e de sua comunidade.>
O Estado também passou a intervir nas relações familiares, garantindo direitos individuais, especialmente para mulheres e crianças. Embora a família moderna ainda tenha importância emocional, seu papel econômico e social foi reduzido. O modelo contemporâneo de vida privada é fortemente regulado pelo Estado, mas também é moldado pelo mercado, criando uma nova dinâmica entre o público e o privado.>
Tendo esse panorama histórico como base, podemos explorar como bens e serviços podem ser classificados como sendo de utilidade pública ou privada. Por exemplo, a transição de serviços essenciais, como o fornecimento de água limpa e energia elétrica, que antes era oferecido pelo setor privado e, em alguns contextos, se tornou um serviço essencial oferecido por empresas públicas. Isso reflete o crescente papel da intervenção estatal em setores fundamentais ao bem-estar coletivo. Inicialmente vistos como negócios privados, esses serviços foram progressivamente reclassificados, pois a lógica de mercado já não atendia às necessidades da sociedade como um todo. >
Essas mudanças não se limitaram a serviços como água e energia. Setores como transporte público, telecomunicações, saneamento básico, saúde, educação e até bancos seguiram trajetórias semelhantes. Em alguns casos, o movimento contrário também trouxe resultados interessantes, como na privatização da telefonia no Brasil, que anteriormente era gerida pelo setor público. A complexa infraestrutura do mundo atual muitas vezes exige tanto investimentos estatais quanto privados, criando situações híbridas e dinâmicas de alternância entre os modelos. Essas decisões, na maioria das vezes, refletem interesses políticos e diferentes visões de mundo, moldando a forma como serviços essenciais são oferecidos à sociedade. Cabe à sociedade, principal interessada, julgar se essa oferta é justa ou não. >
Mas como essa questão se apresenta no mundo digital? A internet é um bem público ou privado? E quanto às plataformas como X, Facebook e Google? No universo digital, a confusão entre o público e o privado parece se intensificar de forma viral. Empresas privadas moldam o discurso político e social de maneira profunda, o que gera desafios regulatórios significativos. O equilíbrio entre a liberdade de expressão, que é um direito público, e a moderação de conteúdo, controlada por corporações e supervisionada pelo Estado, se torna cada vez mais difícil de alcançar, levantando questões sobre quem deve, de fato, regular o que é dito e compartilhado nesses espaços.>
Considerando esses desafios regulatórios, uma alternativa seria desprivatizar as plataformas digitais, transformando-as em infraestruturas públicas, assim como aconteceu com serviços essenciais como água e energia. Essa mudança implicaria uma reconfiguração da gestão e uso dessas plataformas, permitindo que fossem tratadas como bens públicos, com foco no interesse comum, e não exclusivamente comercial. Plataformas digitais deixariam de ser meramente espaços comerciais, tornando-se arenas de participação pública, com novos arranjos institucionais para garantir acesso, responsabilidade e equidade em sua gestão.>
Essa transição abriria espaço para uma nova concepção de cidadania digital, em que a colaboração e os direitos nas plataformas digitais seriam reconhecidos como parte do interesse público, e não mais moldados apenas pelos termos de empresas privadas. O digital passaria a ser tratado como um commons, um bem comum, exigindo novos arranjos para sua governança, equilibrando de forma justa as esferas econômica, política, jurídica e cultural. Não custa sonhar… >
(Esse texto contou com a assistência de uma IA)>
Andre Stangl é professor e pesquisador visitante (ISC-UFBA), cresceu em Brotas, estudou Filosofia e fez doutorado na USP/[email protected] - oficinadelinguagensdigitais.com>