Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Publicado em 21 de janeiro de 2025 às 02:00
Uma tremenda frente fria atrapalhou os planos do fim de semana. Não daria praia nem as crianças poderiam brincar ao ar livre. Mas, sempre há a boa e velha opção do cinema com a família. Decidi levar a filha e o sobrinho para ver o novo filme de Chico Bento. No caminho, enquanto os meninos conversavam sobre leões, capivaras e os grandes desafios do mundo escolar, passamos por um homem que guiava uma bicicleta, embaixo da chuva torrencial. >
A rua estava deserta e ventava muito. Por que alguém sairia para pedalar naquelas condições? Por que não ficar embaixo das cobertas, comendo pipoca? Por que não fazer um exercício na esteira? A resposta estava na traseira do veículo: aquele dispositivo característico de entregas. Não estávamos diante de um atleta ou de um louco. Era um trabalhador.>
Passamos por uma placa de publicidade. Não é difícil adivinhar o produto. Bets. Pergunto a mim mesmo se o ciclista aposta. Imagino que sim. A oportunidade de ficar rico de repente é exibida em praticamente todos os outdoors, jogos de futebol e guarda-sóis. Está nas camisas de todos os times e até no nome de estádios públicos, como a Fonte Nova. Está no nome do campeonato brasileiro e de quase todos os campeonatos. Ganhar só depende do seu conhecimento de futebol. Será?>
Somos o país que mais perde dinheiro com bets no mundo. Mas, tem quem ganhe. Neymar faturou 100 milhões e Cauã Reymond, 24. Não foi jogando, mas convencendo entregadores e você a jogar. Alguns youtubers têm contratos em que são remunerados com base no dinheiro que os seus seguidores perdem. É um modelo apelidado de “cachê da desgraça alheia”. Os donos das empresas, então, nem se fala o quanto ganham cada vez que alguém faz uma fezinha.>
O comércio e a indústria perderam muito porque as pessoas deixaram de comprar comida para gastar com apostas. Índices de suicídios e divórcios explodiram. A quantidade de pessoas viciadas em jogos triplicou. Mesmo se tratando de um produto viciante, não há sequer regulação da publicidade, como há para cigarro e álcool. A tentação pode e é esfregada na cara de adultos e também de crianças, 24 horas por dia.>
Diante de tantos problemas na vida, todos nós precisamos de alívio, diversão, fuga, esperança. Vale para quem é rico e vale ainda mais para quem pedala pela sobrevivência e qualquer um que trabalha seis dias e só descansa um. Os empresários das Bets são ricos, mas os consumidores estão majoritariamente nas classes C e D, assim como os empreendedores que guiam Uber ou fazem entregas de moto ou bicicleta.>
Outros empresários que exploram a dependência alheia vivem nas favelas, porém não podem fazer publicidade. Seus empregados, que também se veem como empreendedores, enquanto empinam pipas e carregam trouxinhas, vivem por lá também. Quando vendem maconha ou crack, contudo, não têm a mesma sorte dos youtubers que entregam vício em apostas através dos celulares. São perseguidos, presos, espancados, humilhados na TV e mortos.>
O nosso ciclista empreendedor possivelmente sente raiva e desprezo pelas mulas empreendedoras. Os brasileiros gastaram quase 21 bilhões de reais por mês com as Bets. O Ifood teve receita de mais de 7 bilhões. Ele está encharcado e sem dinheiro. Mas, aprendeu a se ver como um empreendedor, igual ao dono da jogatina, e a direcionar o seu ódio contra aqueles que acredita serem diferentes e moralmente piores.>
Ele segue pedalando na subida, sem carteira assinada. Não vê nenhum direito trabalhista respeitado. Caso se acidente, ficará sem renda. Mas, talvez não se ressinta disso. Pode ter sido ensinado a pensar que é melhor assim. Não precisa de férias ou feriados. Faz os seus horários e é o patrão de si mesmo. Trabalha quando quer e só depende de si. Mesmo assim, precisa levar lanches de bicicleta em um sábado chuvoso. Apostou na dica do coach, porém esqueceu um detalhe: a banca sempre leva e está levando a sua vida.>
Rafson Ximenes é defensor público>