Como as democracias morrem

Para sobreviver, as democracias necessitam de tolerância (respeito aos adversários) e reserva de poder (autocontenção)

Publicado em 16 de outubro de 2023 às 05:00

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Artigo Crédito: Arte CORREIO

Quando um grupo de amigos se reúne para uma partida de futebol, não basta seguir as regras escritas do Esporte. Em um jogo sem árbitro, cada jogador tem a capacidade de estragar a partida. As faltas, por exemplo, são assinaladas pelos próprios atletas (o famoso “marcou, parou”). Logo, caso um time resolvesse gritar “falta” sempre que o adversário estivesse prestes a marcar um gol, seria impossível derrotá-lo e, com certeza, haveria confusão.

Para sobreviver, as democracias necessitam de tolerância (respeito aos adversários) e reserva de poder (autocontenção). A existência de um sistema de freios e contrapesos e de leis por si não garante o sistema. Também não existem árbitros entre os três Poderes. Cada um deles é capaz de à sua maneira “enojar o baba”, abusar da confiança que lhe foi depositada através das prerrogativas institucionais e trapacear.

Não há regra expressa sobre o que um presidente pode falar. Mas, passamos quatro anos vendo um presidente abusar do seu direito de se comunicar com a população incentivando ataques ao Poder Judiciário, agredindo adversários políticos, governadores e lançando suspeitas infundadas sobre as urnas e a lisura das eleições. Por outro lado, ainda que não haja prazo para indicação do Defensor Público Geral da União, do Procurador Geral da República ou de um Ministro do STF, é evidente o dano à democracia quando as indicações demoram, especialmente nos primeiros casos, em que se tratam simplesmente das chefias das instituições.

O Supremo Tribunal Federal tem a obrigação de julgar as causas da sua competência e, especialmente, de decidir se uma lei é compatível com a Constituição. Não há regra escrita sobre como deve interpretá-la. Mas, obviamente é um excesso usar esse poder para reescrever as normas simplesmente por não gostar delas. Houve abuso quando se interpretou o texto “ninguém poderá ser preso senão em flagrante, prisão cautelar ou condenação criminal transitada em julgado”, como “será preso em caso de condenação em segunda instância”.

Porém, nenhum desses exemplos incomodou o Poder Legislativo. Não houve abertura de processo de impeachment contra o presidente que afrontou a democracia. Não houve qualquer reclamação contundente da Câmara ou do Senado, quando um ministro do STF, sozinho, suspendeu por dois anos a vigência da criação do Juiz de Garantias, sem qualquer indício de inconstitucionalidade. O Congresso só veio a se ofender quando, após julgar os primeiros acusados pelo 08 de janeiro, o STF decidiu pela inconstitucionalidade do Marco Temporal e formou maioria pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto e da posse para uso de maconha, oportunidades em que a corte cumpriu rigorosamente o seu papel, sem qualquer excesso.

Nos últimos anos, o Congresso Nacional, com muita frequência, gritou faltas inexistentes para evitar gols dos adversários. Por exemplo, elevou a idade da aposentadoria compulsória de servidores públicos apenas para impedir que uma presidente indicasse mais ministros do STF, interrompeu o um mandato presidencial por fundamentos que não tinham nenhuma relação com crimes de responsabilidade e instituiu a prática chamada “orçamento secreto”, para comandar paroquialmente e sem transparência os recursos que deveriam ser usados pelos presidentes para conduzir projetos nacionais.

Há menos de um ano, atos antidemocráticos que incluíram a tentativa da explosão de uma bomba no aeroporto de Brasília buscaram impedir a posse do vencedor nas últimas eleições. Depois, uma turba violenta invadiu e depredou as sedes dos três Poderes, em nítida tentativa de golpe de estado tradicional. Nossa democracia esteve por um fio. Aparentemente, os Poderes Executivo e Judiciário entenderam os riscos que correram e começaram um processo de autocrítica.

No entanto, parte do Legislativo tem destoado dos demais poderes e parece mais preocupado em se colocar como “o dono da bola”. Apenas para ilustrar, obstaculizou a liberdade do presidente organizar os seus ministérios, vem permitindo que seus membros deturpem a imunidade parlamentar para destilar preconceitos e fazer piadas infantis, abriu CPIs sem fundamentos legais, passou a debater projetos de lei com dispositivos que o STF acabou de demonstrar serem contrários à Constituição e, no exemplo mais recente, iniciou a discussão de uma PEC para se autoconceder o poder de revisar decisões judiciais!

Quando alguém “enoja o baba”, é bastante possível que haja brigas, ofensas e o jogo não termine. Mesmo quando segue até o final, quem vence desse jeito não obtém qualquer respeito porque o jogo perdeu a sua essência. Ninguém vence republicanamente sem autocontenção. Quando o abuso prepondera, a democracia já morreu.

Rafson Ximenes é defensor público.