Acesse sua conta
Ainda não é assinante?
Ao continuar, você concorda com a nossa Política de Privacidade
ou
Entre com o Google
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Recuperar senha
Preencha o campo abaixo com seu email.

Já tem uma conta? Entre
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Dados não encontrados!
Você ainda não é nosso assinante!
Mas é facil resolver isso, clique abaixo e veja como fazer parte da comunidade Correio *
ASSINE

Imortais de corpo presente

*José Marcelo Domingos de Oliveira é professor, doutor em Ciências Sociais e editor

Publicado em 12 de julho de 2025 às 16:02

Luiz Mott
Luiz Mott Crédito: Acervo pessoal

De vez em quando, a história nos envia um recado inesperado, desses que atravessam a epiderme do tempo e chegam direto ao coração de nossa cultura. Foi assim quando li uma mensagem recente de Luiz Mott, pioneiro do ativismo LGBT+ no Brasil, etnógrafo de almas esquecidas, cronista das minorias, poeta dos interditos.

Mott, aos 79 anos, lúcido e incansável, perguntava a Lilia Moritz Schwarcz, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), intelectual respeitada e figura influente no mundo editorial, por que ele segue invisível às instituições que celebram a literatura e o pensamento nacional. Referia-se, claro, às Academias de Letras baiana e brasileira.

A provocação não é gratuita. "Oi Lilia, tudo bem? Te vi agora na TV na posse da Ana Maria Gonçalves na ABL, elogiando ter ela um livro que foi tema de escola de samba. Se ter livro/personagem descoberto como enredo de escola de samba pode ser critério para se tornar imortal, euzinho tenho três", escreveu. E enumera, com a ironia fina de quem conhece bem os becos da memória: Rosa Egipcíaca (1ª escritora negra), Esperança Garcia 91ª advogada do Brasil), Xica Manicongo (1ª transexual do Brasil). Três personagens negras, escravizadas, reconstruídas por sua pena incansável, devolvidas à história pelo esforço de um homem branco, gay e nordestino, que aprendeu cedo a dar voz ao que a sociedade tentou calar.

Por que, então, Luiz Mott não está onde tantos o reverenciam? Por que a Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897 e a Academia Baiana de Letras, fundada em 1917, com seus fardões bordados e sua obsessão por cânones, ainda ignoram a obra monumental de um dos mais fecundos intelectuais do país?

Luiz Mott não é apenas ativista. É autor de mais de trinta livros, entre eles “Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil” (1993; 2023), “Bahia: Inquisição e Sociedade” (2010) “O Lesbianismo no Brasil” (1987), “Sergipe Colonial & Imperial” (2008), entre tantos outros. Publicações que não apenas dialogam com o campo acadêmico da antropologia, da história e da sexualidade, mas inauguram campos de pesquisa, desbravam temas interditos, escavam silêncios seculares.

É também cronista, memorialista, poeta. Seus textos em jornais baianos, como A Tarde, resistem ao tempo, pois nas entrelinhas lateja um estilo que mescla denúncia, lirismo e erudição popular. Sua escrita não é apenas informativa, mas transformadora. Seu trabalho com as personagens negras esquecidas pela historiografia oficial é comparável ao de historiadores consagrados internacionalmente. E, ainda assim, permanece à margem da legitimação simbólica.

Enquanto isso, a mesma Academia que o ignora acolhe figuras como Maria Bethânia e Gilberto Gil, grandes artistas, sem dúvida, mas cuja presença foi reconhecida sem o mesmo escrutínio aplicado àqueles que ousam ser dissonantes. Não há disputa aqui entre música e literatura, mas entre critérios. Se Bethânia é o canto da língua e Gil, o ritmo da palavra, Mott é o corpo da memória. E não há língua sem corpo.

Há algo de inquietante nessa recusa reiterada. Como escreveu em sua mensagem, o Departamento de Antropologia da UFBA, onde formou gerações de pesquisadores, também não o indicou ao título de Professor Emérito. A pergunta paira: é homofobia? Ou, talvez, o incômodo que a lucidez de Mott provoca, especialmente quando expõe os mecanismos de exclusão operando dentro das próprias instituições da cultura?

O Brasil é mestre em transformar os vivos em fantasmas e canonizar os fantasmas como heróis. Luiz Mott, no entanto, está vivo, escrevendo, pesquisando, intervindo. É um imortal de corpo presente. Não se trata apenas de uma homenagem de fim de carreira, mas de uma reparação simbólica e de um ato de coragem institucional. Reconhecer Mott agora é um compromisso com a diversidade, com a memória crítica do país e com a pluralidade de formas de fazer literatura e pensamento.

Seria um presente para todos nós, e para mim, em particular, que me honro como seu afilhado intelectual. Mais do que uma cadeira, Mott merece um trono entre os que refundam a literatura brasileira por outros caminhos, outras vozes, outros amores.

Se a Academia deseja continuar a ser relevante, precisa ouvir quem ainda não foi ouvido. E, entre esses, Luiz Mott já grita há mais de meio século. Chegou a hora de escutá-lo.