Medo e delírio

A era das fakenews emerge quando estamos, mais do que nunca, com preguiça e medo de pensar

Publicado em 20 de maio de 2024 às 05:00

Mais de meio milhão de gaúchos foram obrigados a deixar suas casas. Cerca de 80.000 estão em abrigos. Pelo menos, 150 morreram e o número pode chegar a 1.000, se considerarmos os desaparecidos. O Governo Federal anunciou um programa bilionário de ajuda. Brasileiros de todas as regiões, diversas ideologias políticas, cores, orientações sexuais e credos doaram toneladas de alimentos. Servidores públicos fizeram resgates heroicos e precisarão trabalhar muito para garantir saúde, assistência jurídica, saneamento básico, segurança e moradia para a população afetada. Porém, algo destoou dessa corrente de solidariedade. Para agravar os efeitos da chuva, o povo do Rio Grande foi atacado por uma enxurrada de fakenews.

Os grupos de Whatsapp passaram a receber milhares de mensagens criadas para espalhar desconfiança e fomentar o caos. A essa altura, todos sabem de onde vem (a mesma fonte que atacava vacinas, máscaras, a ciência, o meio-ambiente), muitos já entenderam a que servem (uma política que usa a morte como estratégia e vidas como mero instrumento). Talvez, entretanto, seja a hora de refletir sobre o quanto estamos imersos em uma sociedade que mistura delírio e medo, especialmente quando a realidade é complexa ou dolorosa. As notícias falsas e os memes podem ser apenas a ponta do iceberg.

A era das fakenews emerge quando estamos, mais do que nunca, com preguiça e medo de pensar. Tudo precisa ser rápido, visual, lido em poucos segundos, uma imagem ou duas. A música deve ser só refrão. O áudio com mais de 1 minuto é acelerado e respondido com a piada “começou o podcast”. O texto com mais de um parágrafo recebe um “vou esperar virar filme”. Os filmes precisam de muita ação e barulho. O silêncio incomoda. Pessoas checam redes sociais dentro do cinema. Tudo o que provoca reflexão machuca.

Se não temos vontade de pensar, nada melhor do que os algoritmos e os grupos de iguais que nos enviam sempre mensagens curtas e confirmatórias do que queremos que seja a realidade. Há quem deseje que a terra seja plana. Outros querem se imaginar rebeldes e revolucionários. Alguns querem que outras pessoas deixem de existir. Também tem os que sonham em ser empreendedores derrotando inimigos imaginários. O grupo de iguais é mais seguro para a preguiça do pensamento que o jornal, o livro, que o saber.

É mais fácil acreditar nas ilusões do que encarar a realidade. A vida real exige espera, exige a convivência com frustrações, exige a consciência de que o que construímos sem uma base sólida desmorona facilmente. É mais fácil produzir dinheiro imediatamente a curto prazo desprezando todos os cuidados ambientais. É mais fácil responder o medo de assalto com mortes, prisões e populismo penal do que escutar a criminologia séria. O médio e o longo prazo estão muito distantes, enquanto o agora é já. Soa chato quando alguém avisa que ainda que o dinheiro ou sensação de paz almejados venham por um momento, se vierem da forma errada, a conta vai chegar mais tarde e será cruel.

Contaminados por essa sociedade delirante, começamos a fazer muito mal uns aos outros e a nós mesmos. Diante de um problema no prédio, não conversamos com o síndico para resolver. Vamos postar meme indignado para agitar o grupo de zap do condomínio. Ofendemos pelo celular, como se não houvesse pessoas de carne e osso sentindo a ofensa. Quando a reação vem, os agressores ainda acham que seus direitos são violados e reclamam de censura, alimentando ainda mais a realidade paralela. Na mistura da vida com as telas, pais acham que estão em um jogo de videogame e trocam tiros por causa do lugar onde os filhos jogavam futebol.

Estamos nos tornando incapazes de encarar os problemas de frente. Temos medo de discutir a tragédia do Rio Grande do Sul e todas as nossas decepções, a partir das suas causas profundas, tirando da frente os espantalhos fáceis. Nos enganamos constantemente e somos incapazes de perceber o quanto estamos tão escancaradamente enganados. Viciados no pensamento do grupo de iguais, não conseguimos imaginar o quanto estamos deslocados do mundo de verdade. Está passando da hora em que ainda dá para retomar o bom senso.

Se não voltarmos a agir como adultos, mesmo quando acharmos que estamos ganhando, estaremos afundando, mesmo que afundemos em belas fotos no Instagram, com vários coraçõezinhos, figurinhas e curtidas de quem afunda conosco. Antes o Medo e Delírio fossem apenas aquele ótimo podcast e não o triste retrato de um tempo.

Rafson Ximenes é defensor público