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Rafson Ximenes
Publicado em 16 de junho de 2025 às 05:00
Desde 8 de janeiro de 2023, há uma novidade no debate público. Lideranças políticas que durante toda a vida defenderam o endurecimento das penas e a tolerância zero, repetindo chavões sobre o Brasil ser o país da impunidade passaram a reclamar de condenações excessivas e más condições carcerárias. Fãs confessos de torturadores e da ditadura militar se queixam de interrogatórios ríspidos. Quem defendia execuções sumárias pela Polícia (ou por milicianos) pede respeito ao devido processo legal. >
Mudar de ideia nem sempre é oportunismo. Pode ser amadurecimento. Além disso, o abandono do punitivismo quando o direito penal alcança pessoas queridas ou admiradas é normal. Muita gente do campo político oposto também só lembra dos princípios humanitários quando os seus são os réus. Debater racionalmente justiça criminal e segurança pública é difícil porque todos se veem como potenciais vítimas, mas não como possíveis réus.>
Para discutir com honestidade, precisamos lembrar que, segundo o Relatório de Informações Penais do SENAPEN, até 31/12/2024, havia 670.265 pessoas presas no Brasil. Apenas 139 delas, 0,02%, tinham relação com o 8 de janeiro. Não é possível debater honestamente pensando apenas nesse grupo tão ínfimo. Os sofrimentos imposto pela pena de prisão se aplicam a todas as pessoas sujeitas a ela, não só a aqueles 0,02%. Havendo finalmente consenso sobre a gravidade da sujeição de adultos a esse sistema, comecemos por sepultar a ideia absurda de reduzir a maioridade penal e impor o mesmo suplício até a adolescentes.>
As prisões realmente estão superlotadas. O déficit de vagas é de 175.886. É simplesmente impossível suprir esse déficit construindo penitenciárias. Por outro lado, existem 182.855 pessoas presas sem condenação, ou seja, sem nem se saber se são culpadas. Há também, 174.481 moradores de favelas presos por venderem drogas nas ruas, apesar da já comprovada completa inutilidade da “Guerra às drogas”. A superlotação é praticamente um espelho perfeito do excesso de prisões provisórias e do desrespeito à ciência na questão dos entorpecentes.>
Muito se fala nos idosos presos pelo 8 de janeiro. Acontece que existem 15.444 brasileiros com mais de 60 anos de idade presos. Ainda existe 1361 deficientes visuais e dos 3895 deficientes físicos, dos quais 470 cadeirantes. Nem mencionei as 180 gestantes. Como falar em meia dúzia de “senhorinhas” e esquecer dessas pessoas?>
Também se fala no sofrimento dos parentes dos presos do 8 de janeiro. Mas, por incrível que pareça, todas as outras pessoas encarceradas são seres humanos e têm famílias. Existem pelo menos 300.000 filhos de pessoas presas contabilizados oficialmente no país. Quem hoje fala em “órfãos de pais vivos” são as mesmos que sempre quiseram acabar com o auxílio reclusão, o benefício previdenciário para os familiares de quem está detido. Mudaram de ideia?>
Há ainda reclamações de que as penas do 8 de janeiro seriam exageradas. Contudo, há que se lembrar que existem 112.807 cumprindo penas superiores a 15 anos por aqui. Pode-se argumentar que é preciso saber qual crime cada um cometeu. Mas a punição prevista para um roubo de bicicleta é mais severa que a imaginada para o grupo de pessoas que se une para tentar abolir o Estado Democrático de Direito. Os réus do 8 de janeiro foram condenados por vários delitos. Se alguém for condenado por 2 ou 3 roubos simples, mesmo sem violência, terá pena maior.>
A sanção prevista para quem tenta implantar uma ditadura é semelhante à de duas pessoas que, juntas, furtam comida de um Supermercado. A pena máxima, 8 anos, é incrivelmente igual. A menos que você considere o ato de furtar comida mais reprovável que acabar com a democracia, é necessário concordar que as penas previstas para roubos e furtos é que são gigantescas. Não dá para defender anistia, ou falar em penas desproporcionais para uns, sem resolver antes o problema dos outros.>
O legado do julgamento do 8 de janeiro e da iminente condenação das autoridades que comandavam planos golpistas pode ser mais que a reafirmação da democracia. Poderemos, pela primeira vez na nossa democracia, começar a pensar em meios de reduzir os crimes, em vez de meios para prender mais pobres. Mas, isso só vai acontecer se as reclamações contra o STF não forem pura hipocrisia.>
Rafson Ximenes, Defensor Público>