Acesse sua conta
Ainda não é assinante?
Ao continuar, você concorda com a nossa Política de Privacidade
ou
Entre com o Google
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Recuperar senha
Preencha o campo abaixo com seu email.

Já tem uma conta? Entre
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Dados não encontrados!
Você ainda não é nosso assinante!
Mas é facil resolver isso, clique abaixo e veja como fazer parte da comunidade Correio *
ASSINE

Como a luta pela sobrevivência de um jegue mudou a história de Itabuna

Na grande enchente dos anos 1920, um bravo equino se refugiou numa pequena ilhota à espera de resgate. Ele batizou a própria ilha e moldou o espírito da cidade

  • Foto do(a) author(a) André Uzeda
  • André Uzeda

Publicado em 25 de maio de 2025 às 11:00

Passarela da Ilha do Jegue
Passarela da Ilha do Jegue Crédito: Prefeitura de Itabuna / Ascom

A ponte Golden Gate, na Califórnia, pode até ser a mais famosa e fotografada do mundo, mas no quesito charme excêntrico está a quilômetros de distância de outra maravilha da engenharia moderna.

Em Itabuna, no sul do estado, a Passarela da Ilha do Jegue rasga o Rio Cachoeira com seu glamour canhestro, se estendendo por 140 metros de extensão e dedicando seu uso exclusivo para o tráfego de pedestres.

Construído em 2018, o pontilhão está assentado sobre uma pequena ilhota fluvial, cuja resiliente história perdura até hoje no imaginário popular. Conta-se que, em 1920, chuvas torrenciais se abateram sobre Itabuna e demais cidades próximas, causando enormes e incontáveis estragos.

Um dos efeitos imediatos foi elevar o nível de água do Rio Cachoeira provocando uma enchente que invadiu casas, destruiu prédios públicos e inviabilizou vias e o pujante comércio local. Naquele contexto histórico, o sul da Bahia vivia o auge prolongado da economia do cacau, com coronéis endinheirados investindo em teatros, igrejas e hotéis de luxo, sobretudo na vizinha Ilhéus.

A maior parte da produção do cacau era escoada para a Europa através do porto de Salvador. A enchente estrangulou a comunicação por rodovias e, como efeito, obrigou os fazendeiros a investirem em um porto marítimo local, tremendo que novas intempéries naturais fizessem apodrecer todo o estoque produzido. Em 1924, Ilhéus inauguraria seu próprio embarcadouro internacional.

Antes do cavalo caramelo, o jegue itabunense

Mesmo com toda destruição, a enchente histórica dos anos 20 produziu uma das mais belas e singelas narrativas de Itabuna, moldando para sempre o espírito da cidade. Com a cheia do rio, um jegue ficou refugiado, sozinho, numa ilhota de três hectares, esperando seu dono ou algum bom samaritano que pudesse resgatá-lo.

Como a pequena ilha ficava no centro do Rio Cachoeira, na altura que corta justamente Itabuna em duas margens, a luta do quadrúpede pela sobrevivência foi acompanhada em tempo real pelos moradores, que se identificaram com a cena, mas nada podiam fazer para ajudá-lo – apenas torcer pela intercessão da Providência Divina.

Aqui, o desfecho da história se multiplica em muitas versões. Alguns atestam que o jegue definhou e morreu no pequeno torrão de terra, à espera do socorro que jamais viria. Outros defendem que foi salvo por uma força-tarefa primorosa, num resgate quase cinematográfico. A terceira via, mais aceita, dá conta que o sagaz animal saiu com as próprias patas, após a água escoar até um nível de locomoção aquática possível, sem maiores riscos.

O fato consumado é que a saga do equino rebatizou aquela faixa insular para todo sempre. Antes, a ilhota fluvial era chamada de “Ilha de Marimbeta”. Depois, passou a ser chamada de “Ilha do Capitão” e, por fim, “Ilha Temístocles”. Todos os nomes eram referências aos antigos proprietários, que arrendaram o espaço para uso particular – geralmente, transformando em um pequeno estábulo, dormitório de animais.

Cavalo caramelo resgatado no Rio Grande do Sul
Cavalo caramelo resgatado no Rio Grande do Sul Crédito: Print do Youtube da Record T

Mais de um século depois, a história do jegue de Itabuna encontraria laços com a grande enchente de 2024, no Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, capital gaúcha, um cavalo, de cor caramelo, estava ilhado sobre o telhado de uma casa inundada, quando a imagem foi capturada por câmeras de TV.

A comoção nas redes sociais foi imediata e envolveu até a primeira-dama da República, Janja da Silva. O animal foi prontamente recuperado, numa grande operação do corpo de bombeiros, com apoio tático do Exército brasileiro.

A poesia do jegue (lá ele)

Nos anos seguintes, a Ilha do Jegue passou a ser ponto secreto para as aventuras românticas de alguns casais apaixonados, que se embeiçavam às margens do Rio Cachoeira – alguns tão bem dotados quanto o referido animal. Já outros, nem tanto.

Quando a prefeitura concluiu a construção da passarela, com a base assentada sobre a pequena ilhota, ela foi oficialmente batizada de Carlos Alves de Oliveira – em homenagem ao vereador Carlito do Sarinha, que emendou cinco mandatos consecutivos na Câmara Municipal, até morrer aos 66 anos, em 2021.

O nome oficial, definitivamente, não pegou. Os itabunenses empacaram em chamar a nova obra de ‘Passarela da Ilha do Jegue’, numa teimosia poética ao animal que lutou pela sobrevivência, sem esmorecer à força da correnteza e do mais profundo abandono.

Há quatro anos, durante as festividades do Natal, uma nova chuva torrencial desmanchou completamente Itabuna, fazendo novamente inundar o Rio Cachoeira. Ruas e avenidas foram destruídas e mais de 600 famílias ficaram desalojadas ou desabrigadas. Encarnando a persistência bruta de um corcel indomável, a cidade (mais uma vez) não sucumbiu.

Esta coluna é dedicada aos meus amigos itabunenses: Carol Lima, Daniella Silva, Andréa Silva, Geovana Oliveira e Jackson Júnior (este último nascido em São João do Panelinha).