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Por Rogério Menezes
Da Redação
Publicado em 25 de fevereiro de 2018 às 08:31
- Atualizado há um ano
Imagem: Pedro Saci Juntos, os três travequinhos que enfeitam trecho do cais próximo à praia da Freguesia na Ilha do Governador, na zona norte do Rio de Janeiro, não somam 60 anos, não pesam 80 quilos, e não importam merda nenhuma. [Eu – escritor apaixonado por gentes com ou sem dentes – os acho criaturas extraordinárias]. Estão lá, ao sabor do vento e das marés, há alguns invernos e verões – quixotescos, mas atrevidos e destemidos a ponto de nenhuma bala perdida ejetada das favelas dominadas pelo tráfico das cercanias tê-los atingido. Reencontro-os no raiar da Quarta-feira de Cinzas, 14 de fevereiro de 2018, no lugar de sempre.
Usam trajes de lamê toscos. Vagabundas perucas loiras – embora os três sejam pretos – de tamanhos variados lhes pousam nos cocurutos. As bocas são borradas de batom. Têm cruzar de pernas finas que não abalariam paris-nenhuma. Decadence avec decadence em estado puro e genuíno. Evito olhá-las nos olhos. Mas capto: sempre me radiografam da cabeça aos pés, com foco na região peniana. Faço olhar de paisagem, firmo o passo, mas dessa mais recente vez que nos vimos não pude deixar de ouvir três vozinhas de patodonald ulularem: - Ui, ui, ui!
Na virada da madrugada, 15 de fevereiro, quinta-feira de cinzas ainda se delineando, eu acordo com rojões de trovões, ventos que fazem janelas de vidro parecer papel-seda, e frenética ciranda de relâmpagos bíblicos. Não os temo: certo frenesi me trespassa a genitália quando ouço esses rugidos da natureza em fúria. Antes de voltar a dormir, o que acontece logo, noites de tempestade me apascentam, penso nos três travequinhos quixotescos que reencontrei na manhã anterior, e me pergunto se eles ainda estarão lá à cata de algum cliente tardio e camicase. Quase imerso em sono profundo, vislumbro três vultos magérrimos, agora sem perucas loiras ou bocas borradas de batom, sendo liquidificados por hiperbólica ventania.
Acordo pela manhã em meio a uma cidade trevosa, aquosa e sufocada pelo pânico. Tomo café-expresso-com-leite + algum carboidrato e caminho pela orla da ilha: quero ver in loco o cenário pós-apocalíptico. Entre centenas de árvores e postes derrubados; fiações de luz expostas no chão cheio de crateras; insulanos tirando baldes d’água de casas náufragas – percebo: os três travequinhos que não importam merda nenhuma não estão no ponto de sempre. O + provável: moradores de casebres íngremes nas favelas manietadas por traficantes, estariam se afundando em vãs tentativas de salvar vestidinhos mixurucas e outros teréns purpurinados.
E se, tão leves, a tempestade os arrastou pelas lamas que desciam pelos morros – naquela noite em que a natureza urrou: - Quem manda nesta porra sou eu!!! – e os adocicou no mar? [Desde então todas as manhãs as procuro, e todas as manhãs não as revejo. Oxalá travequinhos que não importam merda nenhuma tenham sete vidas feito os gatos e reapareçam a qualquer hora, esfuziantes na medida do possível, no cais-mas-não-cais da Ilha do Governador].