Daqui a pouco, vai ter mais mulher escolhendo não ser mãe do que você pode imaginar

Junto com os filhos, nasce um conjunto infinito de atividades que que não cabem mais

Publicado em 25 de maio de 2024 às 11:00

Mainha conta a antiga história real de uma mulher que prendia uma corrente na perna da filha pequena, todos os dias, quando saía pra trabalhar. A menina ficava acorrentada e trancada em casa, sozinha, por muitas horas. Estava alimentada, com mais comida à disposição, tomada banho, em ambiente limpo. A corrente era longa o suficiente para que ela pudesse se movimentar por boa parte da casa e curta o bastante para evitar o acesso a espaços que a mãe considerava perigosos. Julgue, mas lembre: aquela mulher precisava trabalhar como se não fosse mãe e ser mãe como se não precisasse trabalhar.

Uma senhora que conheço era lavadeira e mãe solo de duas crianças: um bebê e uma menina de dois anos. Todos os dias, quando saía pra trabalhar, deixava o bebê na cama sob os cuidados da filha de dois anos. Tinha comida para a menina de dois anos e uma mamadeira pronta para o bebê. A menina de dois anos era instruída para, quando o bebê chorasse, dar a mamadeira. Depois de deixar tudo assim, na própria casa, essa mãe trancava os filhos e ia lavar roupas nos fundos das casas dos patrões. Julgue, mas lembre: aquela mulher precisava trabalhar como se não fosse mãe e ser mãe como se não precisasse trabalhar.

Quando assisti ao vídeo do médico do Paraná que negou atestado à mãe de um menino doente, de cinco anos - alegando que a criança poderia, perfeitamente, ficar sozinha em casa, enquanto ela trabalhava - lembrei dessas duas histórias. Supondo que a mãe seguisse o ‘conselho’ do tal médico, estaria cometendo um crime, pois crianças só podem ficar em casa, sozinhas, no Brasil, depois dos 12 anos. Sem o atestado, porém, a mãe poderia perder o emprego. Ou seja, essa mulher também precisa trabalhar como se não fosse mãe e ser mãe como se não precisasse trabalhar.

O cara foi afastado e deve ser punido. Muita gente se manifestou, eu sei. Massa. Esse tal médico não é mais um problema. A questão é que o ambiente onde nasceram as histórias antigas que abrem este texto - e o discurso criminoso desse homem - permanece inabalável. A gente continua dizendo às mães: ‘trabalhe como se não fosse mãe e seja mãe como se não precisasse trabalhar’. Todos os dias, em todos os espaços, como se isso fosse aceitável.

Foi por esse motivo que, recém-separada (e o pai do meu filho se mudou para outro estado), peguei meu bebê e me piquei para a cidadezinha onde passei a minha primeira infância e pra a qual nunca desejei voltar. A decisão, doloridíssima, resultou em grandes prejuízos profissionais, profundo isolamento e na intensa sensação de inadequação que me acompanhou nos últimos 12 anos. Ainda assim, essa foi a melhor coisa que fiz pela minha saúde mental. Naquela cidade estavam meu pai e minha mãe, sob as asas de quem esperei a infância do meu filho passar.

(Julgue, mas lembre: eu precisava trabalhar como se não fosse mãe e ser mãe como se não precisasse trabalhar. No meu caso, tive o privilégio de poder também ser filha e toda vez que precisei virar em duas ou três pra dar conta das demandas, meu pai e minha mãe estavam lá. Nem era obrigação deles. Sou grata demais.)

O amor dos meus pais - em minha realidade - era a única coisa que poderia me salvar (e salvou, em parte) dessa dualidade perversa da contemporaneidade. Não podemos (nem queremos) mais apenas cuidar dos filhos. Queremos e precisamos de nossas vidas profissionais. Mas seguimos parindo e sendo as principais responsáveis pelas crias. Muitas vezes, as únicas. Veja o percentual de famílias monoparentais mantidas por mulheres, no Brasil. Somos quase 51%. Maioria, portanto. Ganhando bem menos e nos lascando bem mais do que os tais 'chefes' da 'família tradicional', como gostam de ser chamados os que não fugiram das casas.

(Ainda que isso não garanta justa divisão do trabalho - e da despesa - que filho dá.)

(Sobre os que não estão nas casas, nem vou comentar porque dá raiva a ausência que eles chamam de ‘ser pai’.)

Junto com os filhos, nasce um conjunto infinito de atividades que que não cabem mais porque o tempo não pariu, por exemplo. Continuamos tendo apenas as 24 horas de cada dia. O resultado da intensa cobrança pra dar conta de todos os lados é virar ‘péssima mãe’ aos olhos da sociedade (basta a gente, por exemplo, ‘terceirizar’), profissional relapsa aos olhos de chefe, mulher ‘sempre cansada’ aos olhos do namorado. Não adianta. As que se esforçam pra satisfazer esses olhares estão aí com 27 tiques nervosos, 30 quilos mais gordas ou, no mínimo, não dormem direito nunca mais. Este último - mesmo com a solução que encontrei - é meu caso. É muito adoecedor ser tão intensamente cobrada em tantas áreas.

Sim, eu sei. Há imensos prazeres na maternidade. Esse é o amor mais revolucionário que já conheci. Não tô falando dessa parte porque hoje meu romantismo subiu no telhado. Mas me declaro todos os dias, plena de verdades, ao ser humano que mais amo no planeta, esse que eu pari. Ele - que é quem importa - sabe. Só que o amor não ameniza o trabalho braçal, a dualidade, o incômodo de 'viver dividida' nem os prejuízos permanentes à nossa saúde mental.

Não, nada disso é 'pessoal'. Fabricar pessoas é um trabalho para o mundo, alimentar os mamíferos mais frágeis do planeta também. Educar, acarinhar, curar machucados, controlar febres, dar colo, cantar pra dormir, levar à praia, ajudar na lição por anos a fio. Desculpe informar, mas tudo isso (e muito mais) é o trabalho que fazemos sozinhas - por todos - quando não estamos 'no trabalho'. De forma que a sobrecarga materna é um assunto sério e coletivo, do qual seguimos desviando com memes e disfarçando com flores naquela efeméride que eu não sei como ainda têm coragem. Me deixe. Nesse cenário, o tal 'dia das mães' é, no mínimo, uma presepada.

Daqui a pouco, vai ter mais mulher escolhendo não ser mãe do que você pode imaginar. Deixa só todo mundo terminar de acordar. Espera toda garota descobrir que parir (ou adotar) é escolha e não destino. Deixa ficar bem explicado que o problema não é a criança que nasce, mas o nosso contexto todo cheio de perversidades. Deixa a notícia correr: ser mãe só dói tanto porque, coletivamente, cagamos para a maternidade. Justamente porque confiamos que toda mulher está imersa no romantismo que, hoje, felizmente, me falta e que - assim espero - nos faltará cada vez mais.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo