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Flavia Azevedo
Publicado em 2 de junho de 2025 às 19:36
Ah, pronto. Os “Legendários”, finalmente, estão por aqui e já conquistaram espaço em nosso universo digital. A "Montanha Legendários Salvador" bomba no TikTok, com impressionantes 12,3 milhões de visualizações, o que mostra interesse dos soteropolitanos que podem estar apenas curiosos ou, então, querendo subir o morro pra “resgatar a masculinidade”. Essa é a proposta do movimento que surgiu na Guatemala, em 2015, dizendo que é pra promover “autodescoberta” e “fortalecimento espiritual” de homens, por meio de desafios físicos e “reflexões”. Seria bom se ensinassem a fazer faxina, assumir filhos, fazer xixi sem molhar o vaso sanitário, mas o que eles querem é só mesmo transformar cada homem em um “líder do lar”. Isso, na cidade onde 55,8% das famílias são sustentadas por mulheres. Agora veja se vai prestar. >
Pra quem não sabe, o "Legendários" é um movimento cristão pilotado pelo pastor e escritor Chepe Putzu, com a promessa de desenterrar a "melhor versão" de cada macho. "Melhor" na opinião dele, claro. O grupo chegou ao Brasil ali por 2017/2018 e já arregimentou meio mundo de "legendários". Inclusive, lideramos o ranking mundial de países com "potenciais" a serem lapidados. A experiência principal na tal jornada é o famoso evento TOP (Pista Outdoor de Potencial): 72 horas no mato, escalando montanhas e acampando com a Bíblia debaixo do braço. A brincadeira é cara, então, além da vontade, o homem tem que ter dinheiro pra “despertar”. >
A cartilha para esse “resgate da masculinidade" prega a restauração da "configuração original" do macho e o retorno triunfal do "herói" ao lar, o que quer que isso possa significar porque não entendi direito esse negócio de "retornar" nem o que seria esse "triunfo". Lá eles dizem que miram o modelo de Jesus Cristo, com o objetivo de moldar "homens íntegros para que se tornem pais, maridos e profissionais exemplares, os pilares da família, os provedores” e, claro, os que "governam a casa". Sim, de novo o negócio de esposa edificando e marido liderando. Claro.>
(Sendo que Jesus nem foi pai nem foi casado, que se saiba. Ainda por cima, ele liderava os apóstolos, que eram todos homens, mas vamos lá.)>
Na Bahia, os “Legendários” começaram com alguns "buscadores de potencial" em Feira de Santana, onde a primeira assembleia geral aconteceu, em fevereiro passado. De lá pra cá mais e mais homens se animaram a subir o morro pra assumir o papel de “líder” incontestável e provedor onipotente da casa. Para isso, entre outras coisas, eles devem aprender a esconder vulnerabilidades, sensibilidade e outras características humanas que são percebidas como "não masculinas". Para quem é muito besta, essa história é novidade. Porém, com um mínimo de cognição - e alguma leitura do caso -, a pessoa conclui que a proposta é uma só: reforçar um arquétipo masculino antigo, aquele que não deu certo e a gente sabe que precisa superar. >
Então, vamos lá, de novo, dar uns passos pra trás. Em Salvador, com mulheres sustentando a maioria das casas, porém precisando lidar com a fantasia de uma onda de homens que vão se isolar com outros homens no meio do mato pra encontrar a "essência masculina". De novo, a mesma proposta de fugir das conversas necessárias, do amadurecimento devido e das relações de igual pra igual. Outra vez, o grupo “homens” se organizando pra dar um jeito de mandar no grupo “mulheres” que eles insistem em liderar. Mais uma vez, o reforço da ideia de que o máximo que podemos desejar é o “reinado do lar”. Li um bocado de matérias e entendi que esse é o espírito da coisa, por mais que eles enfeitem a ideia com palavras que sugerem algo mais bonitinho, afetuoso e confortável. >
O que acontece lá nos morros, “quem souber morre”. Os “legendários” que voltam das imersões não falam nada. Dizem apenas que são desafios físicos e emocionais, momentos de "conexão profunda" e um despertar para o seu "verdadeiro eu masculino". Imagino os detalhes e, sinceramente, fico um pouco apavorada. Dessa tal “essência masculina” já sabemos o que esperar. A história mostra que, quando homens se juntam pra decidir como lidar com mulheres (e é isso, afinal), nunca foi bom para o lado de cá. Agora, vamos ver se “quem vai é o coelho” ou se os soteropolitanos acreditam que quem sustenta é a gente, quem cria os filhos é a gente, mas eles é que vão mandar. >
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