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Flavia Azevedo
Publicado em 17 de julho de 2023 às 16:30
Estamos em 2023 e dados recentes da Secretaria Nacional de Trânsito (SENATRAN) informam que há 77,5 milhões de Carteiras Nacionais de Habilitação (CNHs) ativas, no Brasil. Delas, 50,3 milhões (65%) são de homens e 27,2 milhões (35%) de mulheres. Se a população brasileira é composta por 48,9% de homens e 51,1% de mulheres, só pelo percentual de habilitados podemos perceber que, também no trânsito, a situação não tá normal. Piora quando sabemos que, mesmo entre a minoria de mulheres habilitadas, há outra questão que nos tira das ruas e estradas: (uma das faces da) amaxofobia. Já ouviu falar? >
Deixar o possante na garagem e viajar de ônibus, entregar o volante do próprio automóvel pra qualquer pessoa, achar que só consegue (e olhe lá) dirigir carro pequeno e pedir ajuda pra estacionar. Medo de dirigir de noite, medo de dirigir na chuva, medo de ultrapassar. Fazer sempre os mesmos percursos, se apavorar diante de qualquer mudança. Taquicardia, sudorese, tremores, boca seca, falta de ar. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, 6% das pessoas habilitadas para dirigir automóveis, no Brasil, vivem assim. Entre elas, segundo a Abramet (Associação Brasileira se Medicina de Tráfego), 80% são mulheres. >
Escapei disso? Não escapei. Justamente por estar no terceiro (e espero que último) ciclo de enfrentamento da minha própria amaxofobia é que vim aqui conversar. Tem gente especializada em tratar o problema e até já contratei, há muitos anos, um senhor que me ajudou bastante viajando no banco do carona. Na época, meu pânico era tanto que eu fechava os olhos (acredite!) quando um perigo se aproximava. Pode rir, mas era grave. Curei esse e outros sintomas. Tomei coragem. Depois, o medo voltou. Mais leve (e eu mais forte), mas tá aqui. Então, não adianta. A luta é interna e não tem só a ver com carros e estradas, preste atenção. Quer ver? Se você é mulher, venha cá.>
Evidente que cada fobia é construída de modo individual. Há medos que só fazem sentido pra mim. Outros, só pra você. Por motivos intransferíveis e a gente só chega na raiz deles com cuidadosa investigação pessoal. Terapia tá aí pra isso e é cada qual em seu cada qual. Mas há o coletivo nos empurrando para o que considera ser nosso lugar. Também nos expelindo dos ambientes nos quais acha que não devemos estar. Não é possível que indivíduos do gênero feminino tenham, mais do que homens, histórias traumáticas particulares que os impeçam de dirigir. Não faz sentido em âmbito individual. Óbvio que o enredo é coletivo. Quem não admite a violência de gênero em tudo que se refere a trânsito é porque é burro ou, então, faz parte.>
Quer um exemplo? Em um dos meus momentos de fobia controlada, dirigi muito em Rondônia. Depois de quase bater o carro algumas vezes - sempre pelo mesmo motivo - uma amiga me explicou o porquê de eu ser várias vezes ultrapassada e "fechada", com violência, naquelas estradas. Era "vingança" de homens ultrapassados por mim, alguns metros antes. Não acreditei, ri da conversa dela. Mas testei e era verdade. Passei, então, a observar o gênero dos motoristas. Toda vez que era homem, eu não ultrapassava. Além de temer pela minha vida, eu estava grávida. O medo virou pavor e foi crescendo a ponto de, depois de parir, eu não conseguir dirigir com meu filho no carro. Depois, nem sem ele, mais. Voltei para a estaca zero. Como tantas mulheres, habilitada, porém incapaz.>
Um exemplo, apenas. A experiência de uma mulher adulta, portadora de CNH, internamente proibida de guiar o próprio automóvel. Recuada, adoecida. A ação daqueles homens é uma situação extrema, violentíssima. Mas o que ouvimos todos os dias - de muitas maneiras - vai no mesmo sentido: temos menos direito à pista do que qualquer pessoa do gênero masculino. Isso, desde criancinhas. Quem pilota motos e carros dos pais bastando, pra isso, que alcancem os pedais? Majoritariamente os meninos, né? Criminosamente autorizados pra "pegar prática". No interior, principalmente, a gente vê isso demais. É que assumir volantes e guidões faz parte da formação do "macho" padrão. Mas por que?>
Porque é controle, claro. Essa é a chave, pode pegar. Porque homens continuam sendo naturalmente treinados, desde cedo, para controlar. Porque volantes e guidões são a metáfora perfeita de comando. Porque quem está atrás deles - e não de carona - é quem dá a direção. Porque quem dá a direção é o humano "mais capaz". Porque eles querem se acreditar mais capazes. Porque, coletivamente, essa ideia ainda cola fácil. Porque as famílias ainda apostam prioritariamente nos meninos as fichas do "o mundo é seu". Porque são eles - e não nós - que ainda têm certas conquistas facilitadas. Volte pro início do texto e leia de novo os dados.>
Já foi e voltou? Faz sentido, não faz? O que explicaria tanta mulher "traumatizada" além do contínuo desencorajamento da nossa autonomia? Por que nossas pernas tremem diante do controle de uma máquina que multiplica a nossa velocidade, que nos dá a liberdade de chegarmos, sozinhas, muito mais longe e rápido? Por que basta arranjar um namorado pra a mulher (já fiz isso várias vezes) passar pro banco do carona, enquanto ele guia o carro? É tudo muito simbólico e, principalmente, sintomático.>
A compreensão profunda do sentido desse "medo" é que pode nos curar. É na força desse "ódio" que eu nunca mais entrego meu carro pra ninguém dirigir, principalmente se for macho. É na certeza de que eu sei guiar - há décadas, inclusive - que passo a me sentir cada vez mais segura quando sou eu ao volante e não qualquer outra pessoa. Foi pensando "eu que decido por mim" que comecei a ignorar o nervosinho que buzina atrás. É lembrando disso, todo dia, que você vai parar de tremer e fazer valer a sua CNH. Se não tiver, vai tirar. A menos que não queira, mas não por medo, mais.>
Pode não caber em suas circunstâncias e até não ser necessário, mas dirigir um carro é das coisas mais simples e gostosas que podemos fazer na vida. Essa é a verdade. Minha avó Noemia - que morreu aos 101 anos e dirigiu (inclusive em estradas) até perto dos 90 - me dizia "é você que domina a máquina e não o contrário". Entre nós e "a máquina" não há grandes dificuldades, nada que não se possa aprender em qualquer autoescola e com alguma prática. Depois disso, o processo é todo de cura da alma. >
Pra mim, agora, em autoterapia selvagem. "Ele tá me vendo aqui, né maluco não", repito, em voz alta, pela pista afora, a cada aproximação que me deixa assustada. Respiro fundo e ultrapasso, seja quem for, quando é seguro e necessário. Até me arrisco a aumentar o som, abrir a janela e sentir prazer junto com o cheiro da estrada. Quem sabe me guiar sou eu, seja a pé ou de carro. Confio mesmo é em mim, sou capaz de muitas coisas. Finalmente, o pensamento que me tira completamente o medo, quando ele quer chegar: dirigir é um negócio tão fácil que quase todo homem faz. É isso. Pegue a visão e boa viagem.>
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo>