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Flavia Azevedo
Publicado em 29 de julho de 2018 às 13:42
- Atualizado há 2 anos
A lógica é exatamente a mesma: quem tem mais força física agride o mais frágil que "se comportou mal". E se você pensou "nao é a mesma coisa", tem razão. Mulheres, mesmo as que permanecem imersas num conjunto de crenças de inferioridade, têm cada dia mais chances de escapar dos seus agressores. Crianças, não.>
Houve um tempo em que homem bater em mulher era coisa comum e aceitável. Não é mais. Tem luta, tem lei, tem mil matérias na televisão. Avançamos, felizmente. Não somos mais "coisas". Redefinimos o nosso valor, o nosso lugar. Bater em mulher dá cadeia, não é mais "normal". No entanto, numa louca contradição, as mesmas mulheres que não aceitam mais apanhar continuam reivindicando o direito de bater para "educar". >
Uma campanha ali, outra acolá tenta explicar que bater em criança é covardia, que somos cuidadoras e não donas das pessoas que colocamos no mundo, que humilhar e agredir tá longe de ser método educacional. E há quem ria disso. Há quem diga que é invasão do espaço familiar. Há quem defenda o direito de torturar crianças questionando "não se pode mais educar?". As pessoas debocham da Lei da Palmada.>
Homens também batem em filhos? Sim, batem. Mas, ainda somos nós no front dos cuidados com a prole, pro bem e pro mal. Essa reflexão não vai partir de quem ainda precisa de polícia pra entender que não pode usar força física nas discussões de casal. É com a gente, sim. Um processo difícil de separar conteúdos, de quebrar um ciclo de violência ancestral, de olhar também para as nossas mães percebendo que, mesmo com todo amor, erraram. >
Nunca foi pra educar. Pessoas batem em crianças porque elas não vão revidar. E pra encurtar conversa, pra se ver livre do problema. E porque a vida é difícil, porque tem horas que a gente não aguenta mais. Porque aprendemos que "pé de galinha não mata pinto", mas mata. Pode apostar.>
Eu fui uma criança que apanhou. Uma questão geracional. Ninguém sequer questionava. E posso lhe garantir que nada em mim foi "consertado" na base da porrada. Pelo contrário. Apanhar me ensinou a mentir porque eu não queria ser pega. Me ensinou também que eu não podia me abrir com meus pais. Por fim, me ensinou a reagir com violência a tudo que me desagradasse. >
(Muita terapia pra entender isso e reprogramar)>
Leo nasceu e eu jurei que nunca iria levantar a mão pro meu filho tão amado. Mas, sim, já rolou palmada. E meus pedidos de desculpa. Todas as vezes, eu estava errada e ele sabe. Faz tempo que não acontece e (abraça aqui) eu sei que não é fácil. É um recondicionamento profundo, é precisar sair do automático, é racionalizar todas as vezes, mesmo nos piores dias, naqueles em que a gente tá mais morta do que cansada.>
Um exercício necessário. Perdoar nossas mães, fazer diferente, reinventar a maternidade. Enfrentar o desafio imenso de olhar pra dentro e assumir que, sim, também da nossa infância saímos machucadas. Que não foi "tudo bem" nem engraçado levar surra de cinto. Que aquelas marcas que ficaram no corpo nos ensinaram tudo errado. >
Sobretudo, entender que nossos filhos devem estar ao nosso lado. Honrados e respeitados. Que não são nossas propriedades da mesma maneira que não somos propriedades dos nossos machos. Trazer os nossos filhos junto com a gente para o lugar que ocupamos. Não apanhar nem bater. E, finalmente, entender que toda surra, toda palmada é, sim, o fracasso de um adulto diante da possibilidade de diálogo.>