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Publicado em 24 de agosto de 2024 às 08:00
(Escrevo este texto com a autorização de Leo. Se chegou até você, é porque ele leu antes de todo mundo, fez os ajustes que quis e está confortável com a publicação.) >
Tinha pensado em conversar com você sobre o cartaz da punheta do filho de Claudia Raia, mas mudei de ideia porque acho que aconteceu um negócio muito interessante aqui em casa. Uma coisa que até nem seria da conta de ninguém se eu não tivesse a convicção de que a gente muda o mundo também com pequenas revoluções domésticas. Ou, pelo menos, esse é o meu recorte predileto. >
Não tô falando de fazer a paz no Oriente Médio lavando a minha própria sentina, entenda. Mas, por exemplo, o olhar que direcionamos ao serviço doméstico, a importância que damos a ele (portanto, a quem o faz), a escolha de quem vai cozinhar, varrer a casa – e, sim, também lavar a sentina – tem tudo a ver com a tal justiça social que jamais existirá sem plena equidade entre os gêneros. >
Acho mesmo que “Vida Doméstica” deveria ser matéria na escola, prova no Enem. Essa é uma competência que precisa ser desenvolvida por todas as pessoas e isso inclui cozinhar, cuidar de filhotes humanos, saber fazer compras no supermercado. É o básico, mínimo imprescindível. Pra mim, parâmetro importante de “funcionalidade”.>
(Ah, sim: sentina é uma palavra antiga que significa vaso sanitário.)>
Mas a minha história - que mistura público e privado - começa enquanto eu lavava os pratos e discutia com Leo porque, numa situação que não vem ao caso, achei que ele havia sido – em relação a mim - menos solidário do que eu gostaria. Em determinado momento, soltei “você é disfuncional na vida doméstica”, o que tem sido a mais pura verdade. Até essa semana, pelo menos. >
Apesar de convidado e treinado, desde bem pequenininho, para participar das atividades que a casa demanda (ele tinha até vassoura e apanhador em miniatura), a adolescência levou embora meu filho altamente colaborativo que adorava passar aspirador e arrumar as compras de supermercado.>
No lugar dele, surgiu um jovem incrível. Um cara inteligente, amoroso, generoso, sociável, educado, entre muitas outras qualidades que me matam de amor, felicidade e orgulho. Mas, ao mesmo tempo, o adolescente que sequer enche as garrafas de água da geladeira que dirá colocar uma roupa na máquina. Que só lava o próprio prato se for obrigado, que toma banho e deixa o banheiro alagado. >
Eu sei, nenhuma novidade. Comum, comuníssimo, esperado. Eu também fui assim e ainda brigava se alguém limpasse meu quarto. Quando chegou a hora, assumi de boas minha casa. Mas eu sou mulher, os tempos são outros e tenho plena consciência da imensa responsabilidade multidisciplinar que é educar um homem em 2024. Pelo mundo, que precisa de melhorias, e principalmente por meu filho. Definitivamente, não quero que ele seja um babaca cercado por babacas.>
Não minto quando digo (e digo muitas vezes) “se você não for parceiro, não vai conseguir nem namorar mulheres interessantes porque a gente não aguenta mais homem disfuncional”, “rapaz, assim você só vai pegar as conservadoras, dependentes e chatas”. Fora o óbvio: um cara de 1,80m em casa, sem ajudar em nada, me deixa profundamente irritada. >
“Como eu faço pra ser funcional, mãe?”, foi a pergunta sincera que me inundou de ternura. “Cara, vamos cozinhar juntos e fazer um faxinão?”, é o colo que ofereci e ele aceitou. Claro que foi conversando sobre os perigos do avanço da extrema direita no planeta, evidentemente discutindo a situação da Venezuela e de toda a América Latina e, obviamente, me sentindo burra porque ele entende muito mais de política do que eu.>
Também foi fazendo fofoca rasteira e dando risada, refogando a carne, picando a cebola, lavando os banheiros, varrendo, esfregando, enxugando e ele pegando os pesos maiores porque eu fiz uma microcirurgia, ainda tô com um pontinho e a médica pediu pra não suar (!) nos dois primeiros dias. Sobretudo, foi vendo meu filho crescer. Ao vivo e a cores. Ali.>
Quem tem bebê em casa conhece (ou deveria conhecer) o conceito de “salto de desenvolvimento”. Esses “saltos” são, precisamente, marcos importantes da primeira infância, momentos em que os bebês desenvolvem novas habilidades motoras, cognitivas, sensoriais, linguísticas e/ou sociais. É um negócio interessante de estudar até para, talvez, descobrir ou, pelo menos, metaforizar: os “saltos de desenvolvimento” não cessam quando crescemos.>
Nesta semana, por exemplo, vivemos, ambos, um desses “saltos”. Sim, Leo aprendeu a fazer coisas e isso é massa. Ele prometeu continuar participando da lida, o que muito me agrada. Mas, sobretudo, no fim da nossa jornada, ele disse “nunca mais fale que sou disfuncional na vida doméstica” e isso resume o quanto foi mais maduro do que muito adulto barbado. >
Veja que reconhecer a disfuncionalidade doméstica como um problema ainda é raro entre machos. Observe também que acatar a crítica e trabalhar para melhorar é outra coisa que homem acha que cai a rola, se fizer. Não, não cai. Meu filho não fez drama, apenas arregaçou as mangas e foi se virar. Com a missão inteiramente cumprida, reivindicou que eu mudasse meu discurso, que ajustasse à nova realidade. Sim, agora temos um trato.>
O dia em que meu filho de 13 anos decidiu ser um homem funcional é tão importante quanto aquele em que ele andou pela primeira vez. Ou aquele em que sorriu, comeu sozinho, abandonou as fraldas. Não ser estrangeiro no próprio ambiente doméstico, ser capaz de cuidar, de se incumbir, de se responsabilizar pelo espaço em que vive. Tudo isso faz parte do caminho de independência e liberdade do homem que estamos construindo lá em casa. Agora, ele entendeu. Seguimos na missão. Cada vez mais leves e lado a lado.>
(Sobre o negócio do cartaz da punheta do filho de Claudia Raia você procura pra ler e ver outro contexto da palavra “disfuncionalidade”.)>
Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo>