O que aconteceu com o acarajé de Dinha?

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 23 de março de 2024 às 09:35

Minha amiga jura que botam farinha de trigo na massa e só quem é baiano alcança a gravidade apocalíptica de um ato como esse. A outra diz que é floco de milho e eu nem sei o que seria pior. Não arrisco apontar a origem do problema culinário, a não ser que tivesse o laudo do ‘exame toxicológico’ em mãos. Não tenho. Vou falar, portanto, só do que sei. A questão é que, já há algum tempo, o tabuleiro da baiana mais famosa de Salvador está com o nome na lama. E com razão.

Não sou herdeira de Dinha nem juíza de acarajé. Porém, tenho a alegria de ser soteropolitana e esse título me autoriza, sim, a meter o bedelho em tudo que é parte da identidade do lugar onde nasci. O tabuleiro de Dinha é um desses patrimônios. De força tão grande que só quem não é daqui marca encontro no Largo de Santana, ali no Rio Vermelho. Agente toma uma é ‘Ni Dinha’, que significa qualquer um dos bares existentes no Largo de Santana, onde ela comandava o tabuleiro. A metonímia ilustra, então, a importância do assunto que vamos tratar. Respeite.

Se você é jovem demais ou não é daqui, saiba que Lindinalva de Assis era um ícone da cultura soteropolitana e dominou aquela área durante muitos anos. Podiam dizer o que quisessem. Principalmente, que os quitutes eram caros, que ela cobrava mais de gringo e que ela não recolhia o lixo produzido pelas centenas de clientes. Talvez seja tudo verdade, mas a qualidade - do acarajé, do abará e de todas as outras iguarias que ela vendia - era indiscutível.

Quando Cira e Regina (outras duas quituteiras) quiseram implantar tabuleiros no Largo de Dinha, o mundo quase se acaba. O episódio ficou conhecido como A Guerra das Baianas e tinha torcidas inflamadas. Todo mundo dava palpite sobre a quebra da hegemonia, da tradição, do estabelecido. Esse foi um assunto levado a seríssimo que dominou mesas de bares, conversas de famílias e gerou matérias nos jornais da época. Resultado que as três ficaram no Rio Vermelho, mas com condições. As outras foram acomodadas por perto e Dinha seguiu sozinha no próprio pedaço. Porque, né?

Dona e proprietária. Herdeira do talento – e do negócio - da avó. Foi dona Ubaldina de Assis que, em 1944, começou essa história fixando o tabuleiro no Largo de Santana. Dinha chegou a ter restaurante, já cozinhou para a família principesca monegasca e foi uma das principais defensoras da categoria das baianas de acarajé, não só para o reconhecimento da profissão, mas também para o tombamento como patrimônio cultural brasileiro.

Em 16 de maio de 2008, a quituteira morreu. Domingo passado, 16 anos depois, estou andando pelo Rio Vermelho, desejando um acarajé crocante, douradinho e enfeitado por aquela beleza que é um tabuleiro gentil e generoso de baiana original. Era final de tarde e o ponto de Regina (meu preferido, há anos) já estava fechando. Resolvi recorrer aos descendentes de Dinha – que, dizem, administram o ponto - e não sei se tenho vocabulário suficiente para descrever o horror da experiência que começa com o péssimo atendimento e termina com o garçom de um bar ali perto me dizendo que ‘nem sei como tem gente que ainda come aí’, também que ‘todo mundo reclama’ e que ‘largam os acarajés e abarás inteiros aqui nas mesas, pode reparar’.

O meu abará era de uma massa grossa com gosto que pode lembrar, de longe, o que deve ser essa iguaria. Mas não chega perto de ser. Engoli empurrado por uma cerveja (eu estava faminta) e pedi um acarajé porque queria ter certeza do que estou escrevendo aqui. Foi o primeiro acarajé ‘elástico’ que comi na vida, o que me fez acreditar na tese da farinha de trigo, que minha amiga levantou. Quando olhei, achei parecido com comida cenográfica. Quando comecei a comer, continuei achando.

Pior: todos os acompanhamentos estavam tristíssimos. Tive pena do vatapá pouquinho e encolhido no canto. Quase consolei a pimenta que nem cheiro tinha. Tive vontade de adotar e alimentar os camarões desbotadinhos. Todos arrasados. Provavelmente, pelo desdém com que foram jogados por aquelas mulheres que vendiam gritando entre si e tratando a clientela com uma raiva que observei por longos minutos, sem entender.

O que aconteceu com o acarajé de Dinha? Fiz essa pergunta a outro garçom que respondeu com a tese de uma briga entre os descendentes que se alternam na administração do tabuleiro, de acordo com os dias da semana. Para ele, foi isso que fez o negócio degringolar. Outras pessoas confirmaram essa cizânia. Uma mulher que estava por ali, a quem fiz a mesma pergunta, afirmou que o ponto foi vendido e que ‘não tem mais ninguém de Dinha aí’.

Todas as outras muitas pessoas com quem conversei sobre o tema me disseram que não comem mais ali, há algum tempo. Que não sabem o motivo, mas tudo ficou ruim. Me indicaram várias baianas ‘muito melhores’, na postagem que fiz enquanto olhava aquele tabuleiro triste, com aquelas mulheres vendendo enraivadas, em contraste com um pôr-do-sol do tipo ‘dos mais bonitos que já vi’. Voltei pra casa com a minha pergunta que divido aqui. O que aconteceu com o acarajé de Dinha? Você sabe responder? E mais: por que, mesmo desse jeito, ele ainda está ali?