O que impressiona na história pós-morte de Gal Costa é o quanto ela é comum

Penso no quanto é tênue esse diacho dessa linha entre saúde e doença na alma, nas relações, nos amores

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 6 de abril de 2024 às 08:00

Se você está no Brasil e não esteve em coma, nos últimos dias, então tem ciência de pelo menos uma parte dos últimos acontecimentos que envolvem Gal Costa, o filho de Gal Costa e a viúva (há controvérsias, mas eu considero assim) de Gal Costa. Também o testamento (anulado) de Gal Costa e até a causa mortis de Gal Costa. Que talvez seja investigada com uma possível exumação dos restos mortais de Gal Costa, pedida pelo filho de Gal Costa que estaria namorando a mãe da própria ex-namorada.

Isso, depois de ‘genro’ e ‘sogra’ terem sido ‘informados’, num centro espírita, de que foram um casal, em determinada vida passada. Aí, eles acharam boa ideia reeditar o romace por aqui. Não tenho nada com isso (nem você), mas a ex-namorada - filha da atual - discorda do ‘amor’, tá muito chateada e já postou que tem vontade de ‘expor’ o filho de Gal Costa e a própria mãe. Ou seja, a desordem é grande e com isso, estamos todos pasmos, impressionados, embasbacados e tristes. Juro que eu também. Porém, ah, porém...

Problema é que a gente não espera que pessoas ‘extraordinárias’ se envolvam em enredos ordinários que contenham relacionamentos abusivos, fanatismos religiosos, brigas por heranças e romances rodriguanos. Por exemplo. Tudo isso que compõe a história pós-morte de Gal Costa é humano demais para acontecer na família de Gal Costa. Em nossas cabeças, claro. Porque a ‘vida perfeita’ dos ídolos é uma das nossas fantasias de estimação.

(‘Nossas’ não, a bem da verdade. Só me incluo nessa pra você não se sentir sozinho, caso ainda confunda obra com autor, profissional com pessoal ou fama com equilíbrio e felicidade.)

O que impressiona na história pós-morte de Gal Costa é o quanto ela é comum. Ainda que a gente não se dê conta disso. Esse enredo corriqueiro ‘não combina’, ‘ofende a memória’ da artista brilhante que ela foi. A gente briga com o ‘mensageiro’, passa a discutir detalhes sobre os quais em nada pesa a nossa opinião. A gente acompanha como quem assiste a uma novela, fantasiando diálogos com personagens e autores que não vão nos escutar. A paixão toda aí.

Pra evitar ver o que importa: o desnudamento das fragilidades de Gal, das más escolhas, das dificuldades para lidar com determinadas questões. A performance de quem ela chamou de ‘amor’. A exposição de relações equivocadas. Tudo isso nos desampara porque se ‘até com ela!’, é que pode acontecer com a gente. Com qualquer um.

Sim, uma das maiores cantoras deste país parece ter ficado décadas presa em um relacionamento abusivo. Com uma mulher odiada pelos amigos. Por isso, se afastou dos amigos. A companheira era também empresária. Houve um declínio na carreira. Depois do diagnóstico, não contou ao filho adolescente que tinha um câncer. Pode ter perdido o controle do próprio patrimônio.

Numa contradição absoluta com a fantasia que nos provoca aquela voz, Gal teve fragilidades e problemas comuns, durante a vida. Agora, viúva e filho se digladiam pela herança, enquanto os desejos de Gal são supostos ou inventados, pelas vontades de quem ficou. Os herdeiros usam as armas que têm. Mais uma vez, o comum e isso é tudo que nos importa nessa história sobre a qual nos debruçamos, mesmo sem ter poder algum.

Extraordinário é dar tudo certo, sabia? Pelo menos é o que fico achando aqui, enquanto penso no quanto é tênue esse diacho dessa linha entre saúde e doença na alma, nas relações, nos amores. Também em quantas coisas a gente precisa aprender, arriscar, explodir e acolher pra conseguir fazer as construções extraordinárias. Reconhecer e desarmar nossas bombas, criar intimidade com nossas sombras. Tudo dolorido e (não ‘mas’) lindo. Acho que tô começando a entender. Por isso que envelhecer é bom.

Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo