Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Gil Vicente Tavares
Publicado em 15 de setembro de 2025 às 05:00
Uma das maiores dificuldades que percebo, no teatro, é a capacidade de se criar personagens complexos, contraditórios, em tramas que fujam da luta do bem contra o mal. Polarização e maniqueísmo andam de mãos dadas. Mesmo numa obra-prima como Ricardo III, de Shakespeare, podemos ver claramente essa questão. >
Na peça do gênio inglês, o Duque de Gloucester, típico golpista, vai usando do assassinato, da conspiração e da traição para tomar o poder e se tornar o rei da Inglaterra. Está tudo nele. Seus estratagemas, seu cinismo, maldade, ardilosidade e vilania transparecem de maneira sórdida, na peça. Ele vai se tornando cada vez mais asqueroso, repugnante, e o bardo inglês coloca até fisicamente essa figura como um corcunda, deformado, para mostrar o quão a deformidade de caráter e física casam-se tão bem na figura de um vilão.>
É uma peça que sempre se torna referência para tempos em que o totalitarismo e figuras autocráticas tomam o poder.>
Mas há uma questão que foge à grande peça de Shakespeare, e que nos atormenta seguidamente. Bertolt Brecht dizia que “a cadela do fascismo está sempre no cio”, e Brecht acabou por ser o autor - e aqui não entro nas qualidades dramatúrgicas, nem em quedas de braço estéticas - que primeiro sistematizou na teoria e na prática, de maneira clara e deliberada, uma ideia de um teatro dialético. E, em seu teatro, em vez de buscar mocinhos e bandidos, ele buscava compreender um período histórico através de figuras contraditórias.>
Em Brecht, é raríssimo vermos uma figura do alto escalão político em cena. As situações todas perpassam o baixo clero, a baixa patente, muito mais síndicos que senadores, muito mais vendedores que industriais.>
Semana passada, tivemos o que o editorial do Estadão chamou de “a maior conquista civilizatória da sociedade brasileira nos últimos 40 anos". Cito o Estadão porque até mesmo um jornal conservador comemorou a decisão do STF. Com um atraso de 40 anos, punimos golpistas, militares e civis, de maneira exemplar. O poder judiciário finalmente fez justiça ao nosso histórico de golpes, assassinatos, torturas, perpetrados por políticos e, sempre eles, os militares, ao longo de nossa história. >
O mundo aplaude, e até inveja, o fortalecimento de nossa democracia. Mandamos um recado aos que querem pôr em xeque nossa liberdade, soberania, diversidade, bem como duvidar, questionar e atacar o correto funcionamento de nossas instituições.>
Mas há duas questões que me afligem.>
A primeira, é que não derrotamos nosso Ricardo III, vencido por Henrique Tudor (futuro Henrique VII), que uniu as casas de York e Lancaster, encerrando a guerra civil e trazendo unidade e paz no governo do país. A derrota de alguns, aqui, não é a derrota do mal. Apenas punimos exemplarmente os protagonistas recentes de nossa desgraça, curamos a ferida sem tratar a doença. Uma dose alopata para nosso alívio.>
A quantidade de políticos e pastores radicais, artistas populares e formadores de opinião que seguem defendendo o indefensável assusta. As provas em abundância das tentativas de interrupção democrática, as ações e os pronunciamentos ofensivos, mentirosos, deturpadores, irônicos, incitadores do ódio, da desinformação e da discórdia, a ineficiência do governo em fazer algo de bom pelo país, a condução desgraçada da pandemia, tudo isso não fez nenhum dos seus apoiadores recuar ou abandonar o barco. Em parte, por saberem que precisam desse capital simbólico para seguirem se empoleirando no poder. Em parte, porque têm, em si, o mesmo mal que alimenta os golpistas condenados.>
Mas a segunda questão é a que mais deveria nos preocupar, desconfio. >
O processo golpista se encerra com todas as provas sendo refutadas por parte considerável da população. Chego a pensar em pelo menos ⅓ dela. É muita gente que acha que houve perseguição política contra um homem correto, temente a Deus e de bem, pai de família, que está sendo castigado por tentar melhorar o país. Seguem afirmando que ele foi condenado sem provas, por uma ditadura da toga e por uma esquerda ditatorial (sim, esses ⅓ que pedem ditadura, que apoiam um grupo que tentou dar um golpe para implantar novamente uma ditadura militar, que elogiam publicamente a mesma, reclamam de uma ditadura, num momento em que o mundo aplaude nossa democracia em bom funcionamento).>
A questão aqui não é policiar o que se deve ou não montar. Com quem, contra quem, por quem. O reino da arte, que deveria ser o da liberdade, tem sempre sofrido com patrulhas ideológicas. Há sempre lados que dizem lutar pela liberdade cerceando, de alguma maneira, a liberdade na arte, de acordo com sua ideologia, interesse ou bandeira.>
É apenas desconfiar que o alívio ao fim de uma peça como Ricardo III, onde os espectadores saem todos torcendo para o mesmo lado, satisfeitos com o castigo do vilão e a vitória da sensatez, não pode ser nosso alívio neste momento do Brasil.>
Não demora, e um novo crápula vestirá o manto de salvador. Ele pode ser boquirroto, violento, desumano, ser contra a luta pela igualdade de direitos, de oportunidades, nem aí para que todos tenham um prato de comida à mesa, ser contra o respeito ao diferente, mas, até por isso mesmo, será um farol para muitos.>
Há uma tara pelo macho branco opressor violento que cega multidões.>
Certa feita, uma pessoa me contou que quando era pequeno, seu pai ia com os três filhos perguntar à professora se estavam os três estudando, e que se não tivessem, que ela poderia sentar a porrada neles, e avisasse para que ele sentasse a porrada nos filhos, também. Ele contava com orgulho, mostrando o quanto seu pai, repressor e violento, mantinha a filharada na rédea curta.>
Eu perguntei se aquilo adiantou. Se algum dos três se dedicou aos estudos, se formou, teve uma carreira acadêmica. Ele respondeu que nada disso aconteceu, ninguém deu pra nada, em termos de estudo. O orgulho dele era a repressão e violência do pai, e não o que, em sua educação, deu certo na formação dos filhos.>
Temos uma multidão que segue, cega, em busca do fantasioso grande pai domador e repressor, símbolo máximo do fascismo. Pessoas que fogem da realidade para se afundar no mundo paralelo do whatsapp, dos pastores do mal, das teorias da conspiração, das falácias sobre ameaça comunista e demais alucinações. Temos que estar atentos. A arte, também.>
É aí que entra a tal dialética, e o olhar atento ao nosso redor. Essas pessoas estão em nossa família, na mesa ao lado do restaurante, em nossa repartição, na fila da rodoviária, do cinema e da farmácia. Com seus defeitos e qualidades, como nós. Como dialogar com elas? Como apresentar fatos, provas, argumentos? Haverá redenção? >
Infelizmente, ela não virá com a condenação dos golpistas de agora. É um grande passo para o país, inegavelmente. A maior conquista civilizatória da sociedade brasileira nos últimos 40 anos. Infelizmente, parte dessa sociedade fincou os pés na lama da extrema direita, essa cadela que está sempre no cio, doida para atrair, com seu cheiro de sangue, a mente fraca dos que não entendem que buscam o próprio mal. >
E que podem, assim, fecundar novas ameaças ao nosso país.>