Acesse sua conta
Ainda não é assinante?
Ao continuar, você concorda com a nossa Política de Privacidade
ou
Entre com o Google
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Recuperar senha
Preencha o campo abaixo com seu email.

Já tem uma conta? Entre
Alterar senha
Preencha os campos abaixo, e clique em "Confirma alteração" para confirmar a mudança.
Dados não encontrados!
Você ainda não é nosso assinante!
Mas é facil resolver isso, clique abaixo e veja como fazer parte da comunidade Correio *
ASSINE

A praça tomada - a distorção do bem público em Salvador

Bastava que pudéssemos caminhar por dentro da praça com tudo limpo, sem estruturas degradadas, buracos a céu aberto, parque infantil e aparelhos de ginástica em más condições

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 10 de novembro de 2025 às 18:24

Num dos prováveis melhores contos do século XX, A casa tomada, Julio Cortázar narra a história de um casal de irmãos que vão passivamente tendo sua casa tomada por estranhos, que aos poucos vão encurralando os dois, até ambos se auto-exilarem após o último cômodo da casa ser invadido.

Sensação parecida eu tive durante minhas caminhadas no Campo Grande, recentemente.

Nossa única e maltratada Praça Dois de Julho, no centro da cidade, é ainda um lugar onde se pode respirar minimamente em meio ao projeto de concretar a cidade inteira. Relativamente pequena, a praça poderia ser ainda mais arborizada, e contar com áreas de lazer mais estruturadas, como um parque robusto e diversificado para crianças, por exemplo. Há um frankenstein meio arena, meio fosso, que, melhor estruturado, também, poderia ser um espaço contínuo de apresentações. Poderíamos ter um ou dois cafés naquela área mais próxima ao Teatro Castro Alves, local que serve apenas de abrigo a pessoas em situação de rua, próximo a dois lagos/chafarizes que vivem eternamente vazios.

Mais do que isso, o próprio nome Dois de Julho poderia inspirar uma revitalização que tirasse aquelas estátuas cafonas imitando esculturas clássicas, e criasse um diálogo com nossa história, servindo como um museu a céu aberto contando a história da independência da Bahia. Apenas um exemplo. Esculturas modernas, como as que eu vi numa modesta praça em Rietberg, pequena cidade alemã cujo antigo jardim do mosteiro virou um parque público, com trabalhos de Wilfried Koch. Placas, mapas, imagens históricas em material resistente ao tempo, registrando um marco da história brasileira.

Mas seria pedir demais, numa cidade que foi a primeira capital do país, e onde a todo momento se inauguram novos museus de acervo e expografia que poderiam, num museu só, ter mais consistência. Na contramão disso, se alguém quiser conhecer nossa história, não tem local algum onde possamos entender a formação, transformações e deformações de nossa cidade, nossa cultura, arte, comércio, religião, ruas, construções, etc. Um museu da história de Salvador. Ou até da Bahia. Mas seria pedir demais.

Bastava que pudéssemos caminhar por dentro da praça com tudo limpo, sem estruturas degradadas, buracos a céu aberto, parque infantil e aparelhos de ginástica em más condições e, por isso, subaproveitados. A única coisa que parece funcionar bem é a equipe de limpeza. Mas eis que dia 27 de outubro eu fui caminhar e me deparei com tendas que estavam empatando o percurso da caminhada. Vi um palco meio mambembe, também, e fiquei sem entender o que era aquilo tudo.

Pensei que pudesse ter havido algum evento no final de semana anterior, e que por ser segunda de manhã, ainda não tinha começado a desmontagem. Acontece que terça, tudo estava igual, com umas cinco ou seis pessoas que não consegui identificar se estavam montando ou desmontando algo. Assim se passou a semana toda, e imaginei: será que haverá algum evento no final de semana, e demoraram uma semana para fazer essa montagem simples de toldos, tendas e estruturas de ferro?

Cheguei na segunda, dia 3, na esperança de ter a praça, nossa única praça, nosso único refúgio em meio ao concreto do centro, livre para minha caminhada. O portão estava fechado. Não só não tinham tirado nada, como agora eu já não podia entrar na praça. Rodeei ela caminhando e vi um portão aberto já perto do corredor da Vitória. Entrei pensando que poderia haver algum problema de desmontagem no lado oposto, e o acesso estava sendo por ali. Ao entrar, outro susto. Placas, tapumes delimitavam a minúscula área pública permitida para o público. Dei uma volta ridícula, e fui para o lado de fora das grades, continuar minha caminhada, já com o conto do Cortázar na cabeça, e um incômodo profundo com a situação.

Terça, dia 4, fui de novo. Percebi que uns três ou quatro trabalhavam num canto, e mais uns dois amarravam umas fitas coloridas num poste mais adiante. Tudo olhando de fora da grade, como quem bisbilhotava propriedade alheia.

Fiquei meio sem acreditar que haveria um evento que desde o dia 27 de outubro ocupava a praça com uma montagem lenta, gradual, esporádica, displicente. Era verdade. Dois dias depois, começava a Feira da Fraternidade. Dez dias para montar uma feira, numa praça pública, sendo que - não acompanhei final de semana - ao menos desde segunda, quatro dias antes, 70%, no mínimo, da praça, estavam tomados e interditados a qualquer cidadão que não estivesse a serviço do evento.

Do dia 27 de outubro até o evento, que fui apreciar, a estrutura não havia mudado muito. Não vem ao caso. Mesmo que fosse uma estrutura incrível, com roda gigante, pista de patinação, palco giratório e área climatizada, nada justificaria, para mim, se ocupar uma (única) praça pública por dez dias para a montagem de um evento pago, privado - 15 reais, o ingresso -, ocupando por mais quatro dias o espaço, computando um total de 14 dias. Duas semanas de transtorno e interdição de acesso a um bem público, enfeando nossa praça que poderia ser um cartão postal, mas que, decadente, sem investimentos para requalificação e qualidade do espaço, é apenas um refúgio armengado na segunda capital menos arborizada do país.

Ouço seguidas reclamações do quanto a Barra, um bairro que tinha tudo pra ser referência nacional de urbanismo, arborização e estrutura, virou avenida para trio elétrico, com comércio desordenado, e concreto, mais concreto e cimento pra todo lado.

Falando em trio elétrico, essa situação do Campo Grande me lembrou o verão em Salvador.

No momento em que o mundo se volta para cá, e a cidade se enche de turistas, a montagem das estruturas do carnaval começa com semanas de antecedência. Tanto o Campo Grande quanto a Barra, que poderiam mostrar o lado belo da cidade, começam a ficar horríveis com aquelas estruturas de metal sendo montadas até mesmo nas praias, e os camarotes começando suas montagens, tudo isso engarrafando e estragando o visual de uma cidade turística que parece se preocupar mais com uma semana de gente mijando e jogando latinhas na rua, do que com todas as potências que temos com nossas belezas naturais, históricas, culturais e artísticas, que poderiam muito mais encantar turistas ao longo de três meses.

E lembremos a máxima de que a melhor cidade para o turista é a que é a melhor cidade para seus nativos. Verão, aqui, é um inferno de desvios, engarrafamentos, calçadas e praias ocupadas, um desconforto generalizado. Um caos.

Adoro carnaval. Sempre frequento a Feira da Fraternidade. Não tenho nada contra ambos. E falo isso por prevenção, sabendo que a estupidez baiana geralmente faz com que as pessoas recebam críticas como ofensas pessoais, empobrecendo o debate com um “falou mal de mim”, em vez de se poder pensar, a partir de possíveis críticas, meios de se melhorar o convívio cidadão.

Fico profundamente incomodado com o descaso que se tem pelas questões de caráter público. O mínimo que se deveria exigir, era celeridade máxima na montagem e desmontagem de estruturas em espaços públicos, pensando que, justamente, são espaços públicos. São espaços que existem para que o cidadão comum possa aproveitar seus impostos tendo um retorno de conforto na cidade em que vive.

Infelizmente, o tempo todo parece que a cidadania é um estorvo aos projetos de ocupação, lucro, demanda privada e aproveitamento do espaço público.

E assim vamos tendo nossa praça, nossa rua, nossa praia, tudo que é público sendo tomado do público, enquanto passivos vamos sendo empurrados para xópins, condomínios e vilas. Mas só os que podem e têm recursos. Quem não pode, que espere a chance de aproveitar algo que deveria ser seu, mas que parece que está ali para ser frequentado de favor, como um brinde, um presente ofertado às vezes pelos poderes públicos ao seu cidadão com impostos em dia.