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Detalhes da briga entre Taís Araújo e Manuela Dias: ego, arte ou política?

A autora, ao reescrever Vale Tudo, não fez uma novela sobre racismo, mas uma novela em que pessoas negras existem em plenitude de trama, falha e contradição

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 8 de novembro de 2025 às 13:00

Taís Araújo deve se afastar da TV após Vale Tudo
Taís Araújo deve se afastar da TV após Vale Tudo Crédito: Reprodução/Instagram

Na quarta-feira (5), a Folha de S.Paulo divulgou que Taís Araújo teria denunciado Manuela Dias ao setor de compliance da Rede Globo. Conforme sabemos, elas foram, respectivamente, atriz e autora no remake de Vale Tudo, que chegou ao fim em 17 de outubro. Antes, houve comentários de que Taís teria relatado pressão de entidades do movimento negro das quais faz parte, que estariam decepcionadas com a representação de sua personagem no folhetim. Já Manuela teria discordado da ideia, o que provocou uma discussão intensa de teor profissional.

A crítica de Taís Araújo aos caminhos de Vale Tudo gerou grande eco no país. A atriz afirmou ter percebido racismo no arco dramático de sua personagem, Raquel Accioli. Também teria afirmado querer provocar uma discussão institucional sobre representatividade e estereótipos raciais na emissora, não apenas sobre o que aparece na tela, mas também sobre as relações e percepções que cercam a experiência de ser uma mulher negra no centro do principal produto televisivo brasileiro. Todo esse imbróglio provocou reações diversas e uma boa oportunidade para a gente praticar esse verbo que anda tão desprestigiado: pensar.

Quando Taís Araújo afirmou ter percebido racismo no tratamento dado à sua personagem Raquel Accioli, o país inteiro pareceu se sentir convocado a uma espécie de tribunal moral. De novo, a reação foi intensa, polarizada, às vezes apaixonada, com uma questão íntima de bastidores subitamente transformada em emblema nacional. Essa pressa em transformar conflito em causa revela um traço típico do nosso tempo: a confusão entre experiência pessoal e diagnóstico estrutural, entre o incômodo legítimo e a denúncia generalizada. É justamente por isso que o episódio revela - assim como tantos outros - nossa dificuldade em lidar com os tons intermediários de todos os debates. Mas vamos ao caso.

Taís Araújo ocupa um lugar de destaque e responsabilidade simbólica. Desde Xica da Silva, passando por Da Cor do Pecado e Mister Brau, até chegar ao protagonismo em Vale Tudo, sua trajetória é um mapa dos avanços e contradições da representação negra na televisão brasileira. Mas protagonizar um papel não é o mesmo que controlar a narrativa. Quando uma atriz do porte de Taís expressa desconforto com a forma como sua personagem é percebida, isso merece escuta, mas também discernimento. Há uma diferença entre sentir-se desajustada dentro de um arco dramático e identificar um ato racista. Uma coisa diz respeito à criação artística; a outra, à ética coletiva. Misturá-las, como se fossem equivalentes, nem sempre é uma bola dentro.

O remake de Vale Tudo tem assinatura de Manuela Dias, autora baiana que já demonstrou interesse profundo em temas de raça e identidade. Prova disso é que ela também assina o roteiro do filme Malês, dirigido por Antônio Pitanga, sobre um dos mais importantes levantes negros do Brasil. Em sua nova versão da novela, Manuela não apenas alterou o elenco, mas também a estrutura racial da trama. Personagens negros foram criados e outros, centrais, que antes eram brancos, passaram a ser negros: Raquel Accioli e Maria de Fátima, por exemplo.

Taís Araújo e Manuela Dias por Reprodução

Essa operação é mais do que estética: desloca o eixo de poder e de desejo, reposicionando presenças que por décadas foram periféricas na teledramaturgia. Acusar essa mesma pessoa de reproduzir racismo apenas por insatisfação com o arco dramático de uma única personagem beira o paradoxo. Talvez esse incômodo surja justamente de um novo tempo, em que a representação e a representatividade cobram de todos nós um pouco mais de maturidade. Explico.

Manuela Dias, ao reescrever Vale Tudo, não fez uma novela sobre racismo, mas uma novela em que pessoas negras existem em plenitude de trama, falha e contradição. O racismo não é o tema, mas o contexto no qual as personagens se movem, assim como na vida real. Essa escolha narrativa não diminui a pauta racial; ao contrário, a normaliza. É o gesto de uma autora entendendo que igualdade simbólica também significa poder contar histórias sem a obrigação de "proteger" personagens pela cor da pele da atriz ou do ator. Ao tomar o próprio desconforto como evidência de racismo, Taís acaba avançando sobre (e expondo) a competência de uma outra profissional, com uma frustração que talvez pertença mais ao espaço da arte do que ao da política.

Há dados objetivos que cabem nesta discussão. A Rede Globo não precisa da minha defesa, mas fui pesquisar. Aí, descobri que a emissora estabeleceu uma meta de ter 50% de pretos e pardos em elencos e equipes até 2030. Em 2025, os grupos já representam 43% das pessoas na empresa, em diversos postos. Além disso, a Globo criou, nos últimos anos, programas internos de formação e promoção de diversidade racial em várias frentes. Instituiu um Núcleo de Diversidade e Inclusão, passou a adotar metas públicas de representatividade, ampliou a presença de autores e diretores negros em suas produções, lançou editais específicos para roteiristas e profissionais pretos e pardos, e promoveu séries e documentários sobre a história e a cultura afro-brasileira.

Também, evidentemente, adotou protocolos contra discriminação nos bastidores e estabeleceu parcerias com instituições que monitoram indicadores de inclusão. O resultado disso tudo já é mais do que perceptível em toda a programação, incluindo séries, novelas, programas de auditório e jornalismo. Para quem, como eu, já sabia o próprio nome na versão de 1988 de Vale Tudo, as mudanças são maiúsculas, o que comemoro em todas as oportunidades. A Rede Globo faz algum favor à população negra? De jeito nenhum. Mas cumpre a obrigação, se movimenta, faz o que lhe cabe. Negar isso beira a desonestidade.

Nesse ponto, a polêmica entre atriz e autora ganha outra dimensão. Taís Araújo e Manuela Dias são, ambas, símbolos de uma televisão em transformação. A primeira habita um corpo que antes era exceção e hoje é comum em papéis centrais; a segunda representa a nova geração de autoras que incorporam a diversidade como parte da gramática dramática, não como ajuda à causa. Quando uma vê racismo e a outra vê conflito de enredo, o que está em jogo não é apenas a divergência entre duas profissionais, mas o embate entre duas formas de entender o protagonismo negro: uma pautada pela vigilância constante; outra, baseada na naturalização da presença. Ambas legítimas e nenhum crime detectado.

Transformar um desacordo criativo em caso nacional diz muito sobre a fragilidade do nosso debate em muitas frentes, inclusive racial. A crítica de Taís Araújo pode ter origem em um sentimento genuíno de exclusão simbólica, mas a leitura pública que dela se fez foi precipitada. Há, sim, racismo estrutural no Brasil. O que não há é discernimento suficiente para separar o racismo institucional das tensões inevitáveis de um processo criativo entre duas mulheres poderosas. E aí entram até outras "camadas". O episódio também expõe um possível dilema de ego, algo humano. Humaníssimo.

A arte, especialmente a televisiva, é território de vaidades e, nelas, às vezes o artista se confunde com o personagem. Do mesmo modo, o autor (ou autora) pode se achar um deus. É compreensível que uma atriz de grande visibilidade sinta a pressão de corresponder a expectativas que ultrapassam o roteiro. Taís não fala só por si; é cobrada como se representasse toda uma coletividade. Essa sobrecarga simbólica é cruel, e nenhum artista suporta ser o porta-voz permanente de uma causa. A coragem que falta ao debate é a de reconhecer que nem todo conflito é opressão, e que, às vezes, a diferença de leitura é apenas diferença de leitura mesmo. Ou antipatias pessoais, por que não?

Taís Araújo não está errada em sentir o que sente. Manuela Dias não está acima da crítica. Aliás, a novela foi (com razão) criticadíssima. Porém - assim como Taís – ela também merece ser lida em suas circunstâncias. O racismo estrutural existe e deve continuar a ser enfrentado; o que não se pode é usá-lo como lente única para decifrar toda dissonância. Precisamente porque é exatamente assim que estamos, como sociedade, banalizando as nossas causas mais importantes.

Siga no Instagram @flaviaazevedoalmeida