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Toni Garrido e o patrulhamento identitário: aonde o extremismo das militâncias vai nos levar?

Entenda como a perseguição disfarçada de luta social ameaça pautas históricas de equidade e direitos humanos

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 8 de outubro de 2025 às 16:17

Os dedos apontados surgem de todos os lados
Os dedos apontados surgem de todos os lados Crédito: Reprodução

“Tá uma loucura”, “passou do ponto”, “tudo muito surreal”... esses são comentários que leio e escuto de amigos quase todos os dias. Estou falando, aqui, EXCLUSIVAMENTE de pessoas progressistas que chegaram ao limite em relação ao extremismo de defensores das pautas às quais sempre se alinharam. É gente que, durante toda a vida, combateu o racismo, a homofobia, a misoginia, a transfobia e qualquer outro pensamento que se estruture de maneira a hierarquizar grupos humanos. De repente, essas pessoas estão repensando seus apoios, antipatizando com lideranças e se afastando do debate público. É um movimento coletivo, e a única certeza que tenho é a de que isso vai nos custar caro.

Foi uma dessas pessoas, inclusive, que - às gargalhadas e em privado - compartilhou comigo essa história de Toni Garrido ter mudado a letra de uma música porque exaltar “menino” não é legal. Só pode exaltar “menina”, pra não ser machista. “Talvez mudar para ‘menine’ seja a próxima providência necessária”, foi o comentário da minha amiga (feminista) ao me reenviar o vídeo do Altas Horas. Sim, precisamos assumir que caímos no ridículo. Por isso, tem muita gente de “saco cheio”, e vou usar essa expressão “machista” para definir o sentimento que, muitas vezes, ainda resulta em silêncio, mas já está fechando a conta que precisaremos pagar logo ali.

(Outra pessoa me perguntou: “Há quanto tempo você não ouvia falar de Toni Garrido?” E é óbvio que precisamos contar com a possibilidade de a tal “reparação” ter sido apenas uma busca de hype que acabou sendo bem-sucedida. De fato, essa foi a primeira notícia, em anos, sobre o artista.)

Por enquanto, o medo de ganhar rótulos como “transfóbico”, “racista”, “misógino”, “homofóbico”, “machista” - apenas por discordar de algum ponto dos discursos prontos ou usar uma palavra “errada” - tem mantido muita gente calada. Ou abobada, como no exemplo de Toni Garrido. Porém, aqui e ali, já há quem tenha entrado no modo “deixe que digam, que pensem, que falem”. Ou seja, o sufocante patrulhamento identitário começa a afastar aliados e a lidar com a física: “força de igual intensidade, mesma direção, mas sentido contrário”. O resultado disso podemos prever com o uso de apenas dois neurônios: a perda de espaços e direitos humanos adquiridos por quem trabalhou sério até aqui. Quer ver? Então, pense comigo.

Você piscou, e o patrulhamento identitário ganhou protagonismo nas arenas sociais. O escrutínio e a tentativa de controle sobre o comportamento e a comunicação de indivíduos e grupos funcionam por mecanismos já bem mapeados e geram profundas consequências na forma como nos expressamos e interagimos. Essa lógica contamina o espaço do diálogo e transforma divergências no mesmo campo em linchamentos públicos, condicionando comportamentos, discursos e até escolhas profissionais.

Toni Garrido explica mudança em “Girassol” e divide opiniões entre fãs do Cidade Negra por Reprodução

O principal meio de operação desse patrulhamento é o ambiente digital, mas não apenas. Também presencialmente, uma divergência de ideias (ou até um involuntário erro de pronome) rapidamente resulta em demonização e “onda de ataques”, alimentada por muito ódio. No virtual, os ataques coordenados garantem circulação máxima do conteúdo e visibilidade para os detratores. Pessoas que já enfrentaram agressões digitais percebem como essas ondas acabam “sujando o algoritmo”, expondo ainda mais seu conteúdo a críticas e ataques. É a tecnologia potencializando a violência que começa no virtual e impacta a vida real de muita gente.

Uma das táticas mais eficazes desse patrulhamento é a rotulagem simplista e binária. Depois de erguerem o “espantalho”, adjetivos pesados são atribuídos a quem questiona determinadas narrativas, deslegitimando opiniões divergentes e criando um clima de hostilidade. Tudo isso reforça a certeza de que o debate é impossível, já que qualquer posição fora do consenso da militância é imediatamente atacada e desqualificada, mesmo quando a intenção é apenas provocar reflexão ou ampliar perspectivas. Às vezes, basta não reafirmar “certezas sagradas” e o pau quebra, já percebeu?

(Até agora não entendi quando foi que revogamos o fato de que, entre pessoas do mesmo campo ideológico, as divergências são, mais do que saudáveis, necessárias!)

O impacto desse patrulhamento está em todas as esferas - da artística à acadêmica. Professores universitários frequentemente relatam medo de tocar em determinados temas, e profissionais de diversas áreas temem perder seus empregos e contratos caso ganhem algum dos adjetivos “pesados” por alguma opinião que não siga inteiramente o que reza a cartilha identitária. Esse medo já se estabeleceu e agora alimenta um “clima de censura”. E esse tipo de censura cria ressentimentos, conforme já aprendemos lá atrás. Os bastidores estão pegando fogo, é o que posso afirmar.

Qual é o próximo momento? Aonde chegaremos com a demonização de figuras públicas aliadas, os ataques diretos a anônimos também vulneráveis, as punições ou abandonos institucionais - sem uma séria apuração dos fatos - porque alguém gritou “transfóbico”, “misógino”, “homofóbico” ou “racista”? O que acontecerá daqui pra frente? Respondo com toda a certeza porque estou vendo acontecer: a cada “cancelamento”, os “cancelados” escolhem a neutralidade ou migram para outros ambientes, frequentemente opostos àqueles que promoveram os ataques. Isso porque, conforme sabemos, permanecer ao lado de quem nos agride não é nem saudável. Só Jesus, dizem, ofereceu a outra face.

A consequência é que, evidentemente, o lado dos verdadeiros racistas, misóginos, homofóbicos e transfóbicos vai ficando cada vez mais forte. Ou, no mínimo, o “lado de cá” vai perdendo a consistência que construímos por décadas. O resultado prático é que vamos voltar muitas casas na conquista de equidade e direitos humanos para todos. Está óbvio e fomos avisados. Sugiro rever estratégias. Se é que ainda dá tempo de consertar.

(“Mas quem abandona as pautas é porque nunca foi de verdade”, você pode estar pensando. Outra sugestão: cuidado com a simplificação de cenários e não subestime demandas e necessidades individuais. Principalmente a de sobrevivência material, frequentemente posta em risco nesses ataques. Há quem ganhe muito dinheiro com militância, mas a maioria das pessoas faz de graça, mesmo quando não são parte dos grupos minorizados, exclusivamente por acreditar que o mundo melhora com equidade. Só que aí, arriscar a própria subsistência por ataques da própria militância talvez seja pedir um pouco demais.)

(“Não vejo nada errado com a militância; é um absurdo culpabilizar quem luta pelos grupos minorizados pela posição dos retrógrados”. Você tem direito a essa conclusão. Nesse caso, diante do seu “espantalho”, apenas respondo: então, tá.)

Siga no Instagram: @flaviaazevedoalmeida