Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Flavia Azevedo
Publicado em 4 de outubro de 2025 às 06:00
A 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (5ª CNPM) - realizada em Brasília de 29 de setembro a 1º de outubro - trouxe à tona um impasse que ganha cada vez mais atenção: como conciliar a materialidade do sexo com a legitimidade da identidade de gênero. O evento, que reuniu cerca de quatro mil participantes, pretendia recolocar as mulheres no centro da formulação de políticas públicas. Só que, muito além das decisões objetivas, ganharam destaque também os atritos, explícitos ou velados, entre grupos que defendem a centralidade do marcador biológico e aqueles que reivindicam o reconhecimento das múltiplas “mulheridades”. >
Essa disputa não é retórica. Organizações críticas ao ativismo trans afirmaram ter sido boicotadas e denunciaram violências. Por sua vez, coletivos trans mencionaram tentativas de exclusão e celebraram a presença massiva no evento. A conferência se tornou, assim, um retrato condensado do dilema contemporâneo: até que ponto sexo e gênero podem ou devem significar a mesma coisa no espaço jurídico e político?>
A materialidade do sexo feminino>
Historicamente, a palavra “mulher” serviu para designar aquelas que carregam vulnerabilidades inscritas em organismos potencialmente capazes de engravidar, parir e amamentar. É a experiência de gestar e estar sujeita a ciclos hormonais e reprodutivos que moldou, ao longo dos séculos, formas específicas de exploração, violência e controle.>
Essa condição fisiológica não é detalhe; é a base sobre a qual se erguem legislações trabalhistas, políticas de saúde e programas de proteção contra violência doméstica. A materialidade da carne e do sangue, do útero e do parto, nunca foi neutra. Serviu tanto para submeter quanto para legitimar a criação de direitos, sempre como resposta ao que o corpo feminino-biológico impõe.>
Identidade de gênero e vulnerabilidades específicas>
Mais recentemente, o conceito de “identidade de gênero” abriu outro território de disputa. Mulheres trans e travestis não compartilham a experiência biológica feminina, mas vivem violências específicas por habitarem corpos que não se conformam ao que é considerado “masculino”.>
Essas violências incluem dificuldades no mercado de trabalho formal, empurrão para a prostituição, perseguição em espaços públicos e assassinatos motivados pela transfobia. Aqui, o marcador de vulnerabilidade não é a biologia, mas a transgressão de expectativas sociais sobre o corpo e o gênero.>
Cada experiência traz vulnerabilidades únicas; nenhuma é menor ou maior que a outra, apenas distintas e exigindo respostas específicas.>
Mulheres
Quando biologia e identidade se encontram>
Esses dois eixos não precisam ser antagônicos, embora frequentemente entrem em conflito. No esporte, a discussão sobre quem compete em categorias femininas não pode prescindir de parâmetros fisiológicos que estruturam o rendimento. Por outro lado, precisamos pensar na justa inclusão de pessoas trans em competições. Na saúde, políticas voltadas à gestação, parto e menopausa são inquestionáveis e só alcançam quem tem determinadas características físicas.>
Ainda no âmbito da saúde, pessoas trans têm demandas relativas ao sexo de origem, além daquelas derivadas da transição de gênero. Todas essas questões precisam ser mensuradas e contabilizadas, sem hierarquia, para que nenhum grupo sofra negligência.>
Violência: misoginia e transfobia>
No campo da violência, há interseções e divergências. Mulheres são as principais vítimas de violência doméstica e assassinato por parceiros e o nome da motivação desses crimes é misoginia. Mulheres trans, por sua vez, sofrem violência e assassinatos motivados pelo fato de corporificarem certo feminino em corpos considerados ilegítimos. A motivação é chamada transfobia.>
Reunir essas estatísticas como se fossem idênticas apaga tanto a história de vulnerabilidade ligada ao sexo biológico quanto a violência singular enfrentada por pessoas trans. Essa prática é chamada de silenciamento - apagar ou ignorar experiências específicas.>
Ainda nesse tema, precisamos entender como acolher homens trans, ou seja, aquelas pessoas nascidas com o sexo biológico feminino que retificam o gênero para masculino. A essas pessoas se dirigem violências motivadas por misoginia e também por transfobia.>
Políticas públicas>
Tropeçamos ao insistir em uniformizar. A proposta de uma categoria única de “mulher” parece generosa, mas dissolve especificidades essenciais.>
Confundir esses campos enfraquece ambos os grupos. Reconhecer diferenças não fragmenta, amplia.>
Pluralidade e reconhecimento>
Talvez seja necessário abandonar a ilusão de que tudo cabe sob o mesmo guarda-chuva. É importante perceber: a experiência de uma mulher trans pode se aproximar, em alguns aspectos, da de um homem trans - mas essa é apenas uma provocação de pensamento. O importante é que existem vulnerabilidades distintas que pedem respostas igualmente distintas. O Estado pode garantir políticas específicas para mulheres, mulheres trans, homens trans e pessoas não binárias, sem fusões fantasiosas nem a negação de qualquer experiência. >
Amadurecer politicamente é abandonar definições totalizantes e encarar a pluralidade tal como ela se apresenta. Isso exige honestidade plena: aceitar que abrigos para gestantes não resolvem os problemas de travestis, e que políticas de empregabilidade para mulheres trans são diferentes das voltadas a mulheres cis. Por exemplo.>
A maternidade pode ser tanto um privilégio quanto uma fonte de opressão, enquanto a identidade dissidente pode ser tanto uma afirmação de liberdade quanto uma sentença de morte. Reconhecer todas as especificidades é o que distingue justiça de demagogia.>
Da pergunta ao que importa>
Responder à pergunta “o que é uma mulher?” é o que menos importa aqui. Mais relevante é deslocar a questão: a que riscos devemos responder?>
Esse olhar permite reconhecer que a gravidez indesejada, altas taxas de feminicídio e mortes de travestis, assim como problemas de empregabilidade, derivam de realidades diferentes. A pergunta correta abre caminho para políticas desenhadas com precisão e não apenas para responder a “palavras de ordem” que, na prática, se esvaziam.>
Cada pessoa tem o direito de se nomear e escolher seus próprios pronomes livremente. Quanto a mim, podem me chamar até de homem, se quiserem. O que importa é que meus direitos conquistados sejam mantidos, e que outros direitos sigam em construção, a partir do reconhecimento das múltiplas e históricas violências sofridas por bilhões de mulheres e pessoas trans.>
Siga no Instagram: @flaviaazevedoalmeida>