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Mãe que agrediu filha em Belo Horizonte expõe o colapso silencioso da maternidade no Brasil

A responsabilidade é dela – que deve responder pelo crime -, mas a história faz refletir sobre falhas estruturais que resultam em sofrimento e sobrecarga de mulheres que se tornam mães

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 4 de setembro de 2025 às 08:34

Mãe foi filmada agredindo criança em Belo Horizonte
Mãe foi filmada agredindo criança em Belo Horizonte Crédito: Reprodução

O vídeo que circulou nesta semana, mostrando a mãe agredindo a filha de dois anos em Belo Horizonte, provocou comoção coletiva e meu ódio mais profundo. Nada justifica os tapas, os chutes, o sufocamento e o desespero que aquela criança viveu. Em determinado momento, o pai entra no quarto, interrompe a agressão e aciona a polícia. Agiu corretamente. Naquele momento, nada diferente disso poderia ou deveria ser feito. O crime está registrado, e a responsabilidade é da mãe, que precisa responder pela brutalidade que cometeu. Dito isso (e você, que é uma pessoa honesta, já entendeu que não estou “passando pano” para a criminosa), pensar sobre o que pode ter levado aquela mãe de gêmeos ao limite é parte essencial de qualquer análise, se queremos evitar outros casos parecidos.

As pistas vêm da própria Jaqueline. Ela tem 22 anos e relatou que estava em processo de separação do pai dos gêmeos. De acordo com ela, o homem de 38 anos a deixava sozinha com todas as responsabilidades relativas às crianças. Além disso, condicionava o apoio financeiro, depois da separação, à manutenção de relações sexuais. Essa acusação está em investigação, é claro. Pode ser mentira e, nesse caso, a personalidade de Jaqueline ganha contornos ainda mais terríveis. Mas a vulnerabilidade e a sobrecarga de mães são realidades conhecidas. Se a denúncia se provar verdadeira, a mãe ainda tem que pagar pelo crime que cometeu. Qualquer pessoa que se comporte de forma parecida precisa ser punida. Mas muitas vezes, as mães não são as únicas culpadas em situações assim.

Cuidar de filhos é um grande desafio. Mesmo nas melhores condições – e com todo o amor do mundo -, é um acontecimento que pode transformar a rotina em um ciclo interminável de sono interrompido, demandas simultâneas e ausência de tempo para que corpo e  mente se reorganizem. Quando esse cuidado recai inteiramente sobre uma mulher, a maternidade pode virar uma prolongada clausura física e turbulência emocional. Se, além disso, a mãe é submetida a abusos psíquicos e outras violências, não surpreende que, eventualmente, aconteçam explosões. Mesmo nesses casos, mulheres não estão isentas de suas responsabilidades legais (estou dizendo de novo, preste atenção), mas não parece justo que sobre quem abandonou, chantageou e violentou - colaborando para a degradação de sua saúde mental - não pese responsabilidade alguma.

Toda forma de violência contra mães pode reverberar imediatamente sobre os filhos. Uma revisão sistemática brasileira publicada na Revista Paidéia da USP mostrou que 75,8% das crianças expostas a um ambiente de violência doméstica apresentam sintomas de estresse pós-traumático e insegurança. Meta-análises internacionais, como a de Kitzmann et al., publicada em 2003 no Journal of Family Psychology, confirmam riscos elevados de ansiedade, depressão, agressividade e condutas antissociais. Outro estudo de Evans, Davies e DiLillo, publicado em 2008 no periódico Child Abuse & Neglect, reforça a correlação em larga escala entre exposição à violência doméstica e problemas emocionais e comportamentais nas crianças.

Pesquisas brasileiras, como a de Oliveira e Souza (2018, Acta Paulista de Enfermagem), apontam que crianças que testemunham violência conjugal têm maior probabilidade de baixo rendimento escolar, baixa autoestima e transtornos emocionais. Além do impacto direto do ambiente sobre a infância, há aquele que é mediado pelo sofrimento materno: uma mulher desequilibrada pela violência e pelo abandono que sofre está mais vulnerável a reproduzir violências, inclusive contra os próprios filhos.

É também por isso que Mariana Regis, uma das maiores advogadas familiaristas do Brasil, afirma que “é dever da sociedade cuidar das crianças, e não há como cuidar das crianças sem cuidar das mães”. Sim, das mães. Porque, na prática, homens ainda não assumiram coletivamente o papel de cuidado. Nem das casas, nem dos doentes, nem dos idosos, nem dos filhos. Na vida real, homens seguem abandonando e mulheres permanecem na linha de frente de todo o trabalho invisível que sustenta famílias, comunidades e a própria economia. A gente continua fazendo gente, cuidando de gente, sustentando gente e perdendo um pouco da saúde (física e mental) a cada dia.

Aqui na Bahia, mulheres chefiam 51% das famílias (em Salvador, 55%). Cruze esses números com as taxas de violência masculina contra a mulher nesse mesmo território, veja a disparidade salarial entre homens e mulheres, entenda a morosidade do Judiciário nas Varas de Família - que estende por anos decisões simples que significam subsistência de crianças - e analise, com honestidade, o ambiente em que vivemos. Esse cenário desestrutura quem está diretamente responsável pela infância. Imaginar que desse contexto surjam apenas mães equilibradas, com a saúde mental em dia, é fantasiar que toda mulher teria o superpoder de transformar merda em flor. Nem sempre é possível.

É nesse nó que provavelmente se encontra o caso extremo de Jaqueline. É nesse lugar que estão outros casos de diferentes complexidades, mas da mesma linha. É nessa contradição que estamos todos: esperar da maternidade transformada em rotina impossível, sem pausas, sem partilha, sem respiro, apenas as belezas do amor. A violência, muitas vezes, é a ponta de um iceberg de negligência coletiva. A agressão contra a criança é, muitas vezes, a expressão mais cruel de um sistema que sobrecarrega e violenta mulheres, esperando que elas se mantenham funcionais, equilibradas e cheias de carinho. Lembrando que esse sistema é o mesmo que, por outro lado, “aplaude” qualquer tipo de paternidade, por mais superficial que seja. Criminosos de qualquer gênero (raça, posição social etc) devem ser punidos (sim, estou repetindo), mas há de se entender o contexto, se o que queremos é resolver o problema coletivo.

(Estou cansada de conversar com mães que se sentem culpadas - ao fim dos dias em que deram conta de tudo sozinhas - por não conseguirem ser tão carinhosas quanto gostariam. Por mais que a imensa maioria delas se mantenha firme, raramente são as mães que planejaram e poderiam ser, caso não vivessem no limite.)

A constatação é de que mães também são seres humanos, por mais que essa informação surpreenda. A má notícia é que, enquanto a maternidade continuar sendo uma prisão solitária onde mulheres são abandonadas, novas histórias terríveis como a de Jaqueline continuarão a surgir. E outras, de diferentes níveis de gravidade, mas características parecidas. A boa notícia é que, no Brasil - assim como em muitos lugares do mundo - a taxa de natalidade tem caído a níveis baixíssimos. Isto porque, finalmente, mulheres começaram a entender o valor - e a complexidade - do trabalho pelo qual são intensamente cobradas e julgadas, mas fazem praticamente sozinhas. Se a gente parar de parir, a humanidade acaba. Taí uma coisa que, um dia, todo mundo vai entender direitinho.

Siga no Instagram: @flaviaazevedoalmeida