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Por que cada vez mais mulheres rejeitam homens “bombados”?

Para muitas, o corpo masculino hipertrofiado agora é percebido como sinal de perigo e perturbação

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 28 de agosto de 2025 às 06:00

Os
Os "bombados" estão perdendo espaço Crédito: Reprodução

Sabemos que nem todo “fortão” é violento e que nem todo “fraquinho” é pacífico. Mas tem conversa nova rolando entre as “héteras”, venho informar. Principalmente depois que Samira Mendes Khouri foi espancada pelo namorado Pedro Camilo Garcia Castro e Juliana Garcia dos Santos recebeu mais de 60 socos no rosto, desferidos pelo ex Igor Eduardo Pereira Cabral. É que os dois agressores têm uma característica em comum: músculos hipertrofiados, o tal “shape” que tanta gente tem buscado na base do “custe o que custar”. Essa característica, que já foi celebrada como símbolo de disciplina, potência e beleza, agora é percebida, por muitas, como “aviso de problema”. A rejeição não nasce do nada, claro. Ela é alimentada por dados clínicos - cada vez mais conhecidos - e por casos como esses dois que acabei de citar.

É o imaginário feminino passando por mais uma mutação. O corpo masculino hipertrofiado, exaltado como ideal de virilidade desde os anos 1980, começa a ser reinterpretado pelas mulheres não mais como “promessa de proteção”, mas como prenúncio de agressividade. Um ponto central é que essa força raramente é natural. A musculatura exacerbada, em muitos casos, é produto do uso disseminado de esteroides anabolizantes androgênicos (AAS). Esses compostos, desenvolvidos para estimular crescimento muscular, têm efeitos reconhecidos sobre o comportamento: aumento da irritabilidade, impulsividade, menor tolerância à frustração, episódios maníacos e até sintomas psicóticos. Uma meta-análise publicada em 2020 no Neuroscience & Biobehavioral Reviews (Papazisis et al.) demonstrou associação significativa entre uso de AAS e aumento de agressividade em homens saudáveis, reforçando evidências que antes apareciam de forma fragmentada.

Não são apenas números, nem é só opinião. Relatos clínicos revelam o impacto. Uma revisão sistemática de Oberlander e Henderson (2018), no Journal of Psychiatric Research, mostrou que usuários sem histórico de violência desenvolveram episódios de explosões de raiva e agressividade após ciclos de esteroides. Outro estudo clássico (Pope & Katz, 1990, American Journal of Psychiatry) registrou que 22% dos usuários apresentaram síndromes afetivas graves e 12% sintomas psicóticos durante o uso. Isso significa que, muitas vezes, quando o “shape” chega, é acompanhado por instabilidade emocional. No mínimo.

Essa equação - corpo inflado e cabeça frágil - ganha ainda mais gravidade em sociedades que mantêm o modelo masculino “tradicional”. Estudos brasileiros sobre violência conjugal (Heleieth Saffioti, Wânia Pasinato) mostram que o perfil do agressor íntimo é marcado por baixa tolerância ao estresse, autoestima frágil e explosões de raiva. Quando somamos a esse perfil os efeitos documentados dos esteroides, a combinação é explosiva. Em 2019, Lange e colaboradores publicaram na revista Aggressive Behavior um estudo ligando o uso de AAS a comportamentos violentos em relações íntimas, exatamente no terreno onde feminicídios ocorrem com maior frequência.

É nessa intersecção que os casos de Samira e Juliana surgem como exemplos. Não sabemos se os criminosos usavam AAS, mas as imagens deles sugerem e é desse modo que aqueles corpos estão sendo interpretados. Em ambos os crimes, o motor da violência foi o ciúme, esse clássico dispositivo de controle masculino sobre a autonomia feminina. Mas o ciúme, quando amplificado por músculos inflados de testosterona sintética e estado psíquico alterado, tem muito mais chances de resultar em tragédia. Não é “apenas” posse, mas posse encarnada em homens de corpos treinados e quimicamente potencializados para agredir.

Samira Khouri por Reprodução

O pano de fundo cultural ajuda a compreender como chegamos até aqui. Desde os anos 1980, estudos como o clássico The Adonis Complex (Pope, Phillips & Olivardia, 2000) já alertavam para a “hipermasculinização midiática”: heróis de brinquedo, personagens de filmes e modelos publicitários com músculos cada vez mais irreais. Esse padrão produziu o que a psiquiatria batizou de muscle dysmorphia (ou vigorexia), ou seja, a percepção de nunca estar suficientemente musculoso. A consequência foi uma geração de homens entregues a ciclos de treino e drogas, em busca de um corpo idealizado que, como consequência, os aproxima da violência e os afasta da estabilidade emocional.

Para as mulheres, essa hipertrofia finalmente deixou de ser fetiche. Pesquisas qualitativas no Brasil (Grossi, 2018) revelam que a musculatura exagerada, há sete anos, já começava a ser descrita por entrevistadas como “arrogância visível” e “sinal de agressividade latente”. Nas redes sociais, multiplicam-se cada vez mais relatos de desconfiança diante de homens hipertrofiados, agora percebidos como potenciais agressores. Muito além de um “capricho estético”, mulheres estão fazendo uma leitura política desses corpos masculinos, ou seja, estão acionando o instinto de autopreservação diante de sinais de risco.

Estamos, portanto, diante de um interessante deslocamento do desejo feminino. Ao rejeitar o “shape bomba”, muitas mulheres não estão apenas mudando critérios estéticos, mas também recusando uma masculinidade construída em músculos, controle e agressividade. É uma escolha política, essa de se recusar a arriscar a vida ao lado de um corpo fabricado para dominar. Talvez seja assim, pelo afastamento deliberado das mulheres, que o mito da virilidade musculosa e agressiva comece a ruir. Não por uma reflexão masculina, mas pela rejeição das que cansaram de ter medo dos homens que escolhem para amar.

Siga no Instagram: @flaviaazevedoalmeida

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