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Flavia Azevedo
Publicado em 16 de agosto de 2025 às 06:00
O termo “teto de algodão”, criado em 2012 pela atriz e ativista trans canadense Drew DeVeaux, trata de uma barreira percebida por mulheres trans em encontros lésbicos e bissexuais. O nome faz referência ao “teto de vidro”, só que ligado à intimidade. Ele aponta que a presença de genitália masculina nos corpos de mulheres trans funciona como um impedimento para relações românticas e sexuais com mulheres cis lésbicas. Olhe ao redor e perceba que, mesmo em comunidades LGBTQ+, a rejeição de mulheres cis a mulheres trans tem gerado debates intensos e criado tensões entre as ideias de inclusão e de autonomia sexual. Ou seja, é grave. Então, vamos entender o caso? >
(Você já sabe, mas vale lembrar: mulheres cisgênero - ou “cis” - são aquelas cuja identidade de gênero coincide com o sexo biológico, enquanto mulheres trans são aquelas que têm sexo biológico masculino, mas se identificam e vivem como mulheres.)>
Há dois pontos de vista principais sobre o tema: algumas abordagens transfeministas e queer feministas argumentam que a recusa de mulheres cisgênero em se relacionar com mulheres trans é provocada por preconceitos sociais e culturais. Por esse prisma, normas culturais moldam a forma como mulheres trans são vistas e a rejeição, portanto, é uma manifestação de transfobia e não a simples expressão de desejo sexual pessoal.>
Por outro lado, grupos feministas e de lésbicas cis enxergam o conceito de “teto de algodão” como uma forma de pressão sobre a autonomia sexual, considerando que a imposição de aceitação de mulheres trans é uma violação do direito de escolher parceiras com base em critérios pessoais. Pesquisas realizadas no Reino Unido em 2019 por Angela Wild mostraram que algumas lésbicas relataram sentir-se pressionadas a aceitar mulheres trans como parceiras em grupos LGBT+, sob risco de serem rotuladas como transfóbicas.>
A tensão tem crescido e se ampliado para espaços de convivência online, inclusive. Dados mostram o alcance do fenômeno e a diversidade de experiências. Em uma pesquisa de 2022 sobre o “Teto de Algodão” em Mulheres Lésbicas e Bissexuais Falantes de Espanhol conduzida por Montoya Gastélum, 54,7% das participantes relataram ter sido assediadas sexualmente online por mulheres trans, sendo 65,5% entre lésbicas e 45,8% entre bissexuais. Além disso, 18,1% disseram ter sido pressionadas ou coagidas sexualmente, com 30,9% das lésbicas afetadas. A pesquisa também apontou que 2,3% sofreram assédio por homens trans, e 74,2% por outras pessoas, incluindo homens e mulheres cis.>
Nessa mesma pesquisa espanhola, 94,4% das mulheres relataram encontrar mulheres trans nas seções de “mulheres que amam mulheres”, e 96,9% afirmaram que filtros seriam desejáveis para impedir que mulheres trans ou homens aparecessem como opções de encontros. Plataformas como Tinder, Wapa e Her foram mencionadas com frequência. Observações no México indicam que mulheres trans buscam alternativas como o Her para encontrar pessoas com a mesma identidade de gênero, mas enfrentam barreiras na construção de relações afetivas ou sexuais com mulheres cis.>
Outras pesquisas internacionais reforçam a complexidade do tema. Angela Wild, em estudo realizado no Reino Unido em 2019, constatou que 87,5% das lésbicas cis entrevistadas não reconheciam mulheres trans como mulheres, 95% não as consideravam lésbicas, e 98,8% não as viam como potenciais parceiras sexuais. Vale lembrar que estudos antigos, como os conduzidos por Stella Rush na década de 1950, já indicavam expectativas rígidas sobre papéis butch (lésbicas mais “masculinas”) e femme (lésbicas mais “femininas”), demonstrando que a discussão sobre identidade e preferência é antiga e presente em diferentes contextos culturais.>
O termo “teto de algodão” nomeia, portanto, a roupagem contemporânea de um conflito real entre identidade, desejo e consentimento que se manifesta de formas diferentes para cada grupo. Para alguns, ele reflete estigmas e dificuldades enfrentadas por mulheres trans. Para outros, evidencia pressões que desafiam a autonomia sexual de lésbicas cis. Haverá um consenso? Não sei. Mulheres cis serão processadas caso rejeitem sexualmente mulheres trans? Em outros tempos, mulheres trans não eram assumidas, por homens, como parceiras e hoje isso é cada vez mais comum. A tensão no campo afetivo serve para avanços em outras áreas? Até recentemente, dizer "não namoro com negros" era percebido como "gosto pessoal". Hoje, isso é racismo inegável.>
Conclusão? Desta vez, fico devendo. Só sei que - dentro ou fora da sigla - vida sexual/afetiva é um balaio de encontros, delícias e frustrações de expectativas. Também sei que meu desejo (assim como o seu) é a expressão mutante de um conjunto aleatório de características psíquicas individuais, construídas de formas diversas, em muitos momentos da vida. Sei que o meu desejo de hoje sequer se parece com o jeito que ele era anos atrás. Também sei que a vida não é justa, e que o tesão - esse bicho doido - tá nem aí pra pautas coletivas. Ele até pode mudar, mas é de um jeito subjetivo e cheio de esquinas. Sugiro, então, que todo mundo respire. E que lidemos com os fatos com menos agonia.>
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