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Flavia Azevedo
Publicado em 5 de agosto de 2025 às 06:00
Ao contrário do que muita gente acha, afirmar que “comigo não acontece” não é arrogância, misticismo nem desdém pela dor das que sucumbiram. Eu mesma digo e repito. Isso é apenas provar que, em relações amorosas, é possível perceber os sinais que antecedem a violência física. É preciso reconhecer que muitas mulheres – mesmo diante do azar de encontrar um agressor pela frente - não permitem que o ciclo se concretize ou, então, interrompem logo no início. Afinal, as campanhas não são feitas para ensinar exatamente o protocolo certinho? Pois aprendemos a nos defender e isso é lindo.>
Não teríamos um manual se a violência masculina fosse uma abstração invencível. Não é. Quando ela acontece, na maioria das vezes é tudo muito previsível. Então, colocamos limites claros e nos afastamos ao primeiro sinal de desrespeito. Não permitimos. Essa postura nasce de informação, autoconhecimento, coragem e, acima de tudo, consideração por nós mesmas. É um avanço que precisa ser reconhecido como necessário e coletivo. Principalmente porque já sabemos que não serão os homens a reduzir as próprias taxas de violência, incluindo feminicídios. >
Não é novidade que há vários fatores que mantêm mulheres em relações abusivas. O principal deles, historicamente, é a dependência financeira, especialmente quando há filhos. Só que, atualmente, mais da metade dos lares brasileiros já são sustentados por mulheres, o que desmonta a ideia de que o dinheiro continua sendo o motivo central. A dependência emocional, então, surge como outro fator importante - um obstáculo alimentado por uma cultura que associa solidão a fracasso e amor a “sacrifício”. >
É nisso que precisamos trabalhar, já que é o “novo” problema reconhecido. Sim, acolher as vítimas com seriedade e cuidado, mas também encorajar a reagir diante dessa “amarra invisível” para que a história não se repita. Dizer que “ela não podia fazer nada” não ajuda, porque nega qualquer possibilidade de reação. Há uma chance real de interromper o ciclo e precisamos mostrar, inclusive com exemplos, que isso é possível.>
A violência masculina contra a mulher raramente aparece de repente. Ela começa de forma gradual, em pequenos gestos de controle apresentados como “cuidado”. Depois da valorização do ciúme como “prova de amor”, segue a escalada exaustivamente divulgada em campanhas de enfrentamento desse tipo de violência. Ao reconhecer os primeiros sinais e encerrar relacionamentos de futuro perigoso - antes de estabelecer maiores vínculos - a mulher está fazendo o que se recomenda: cuidando de si. Salvo em casos extremos, isso funciona e ela escapou de uma armadilha. Então, parabéns!>
Nem por isso são “culpadas” as que não conseguiram. Além de fragilidades individuais, condições de classe, raça e geração influenciam diretamente essa possibilidade de reação. Enquanto algumas contam com apoio, outras enfrentam isolamento e julgamentos sociais mais duros. Exaltar quem conseguiu não significa diminuir quem não pôde. É apenas mostrar que há caminhos possíveis e que eles precisam ser ampliados (na prática e na construção simbólica) para que se tornem cada vez mais acessíveis.>
(A responsabilidade pela violência é do agressor, e isso não está em discussão. Mas, veja: também sabemos que o assaltante é o criminoso em um assalto, e ainda assim tomamos precauções como trancar portas ou evitar certos comportamentos "de risco", porque a violência urbana é um fato da vida. Por que seria diferente no campo dos afetos?) >
As taxas de feminicídio crescem, a “machosfera” transforma misoginia em produto lucrativo, “odiar mulheres” virou prática organizada em muitos grupos. Diante disso, não podemos fazer nada? Podemos, sim. Enquanto as autoridades se movem lentamente e os homens aliados são raríssimos, precisamos nos defender. Somos nós por nós. Valorizar as mulheres que tomam a dianteira afirmando (e provando) que “comigo não acontece” é tão importante quanto acolher as que foram atingidas pela violência.>
Então, vamos exaltar as mulheres que nunca apanharam nem vão apanhar de namorado, ficante ou marido. As que, se precisarem, viram a mesa, gritam mais alto, bloqueiam. As que não permitem desrespeito. Valorizar essa postura não diminui nem aumenta a dor de quem sofreu violência, mas evidencia a força de quem rejeita o papel de vítima. Valorizar quem conseguiu, contar histórias de quem interrompeu a escalada, mostra que há escolhas possíveis e melhores caminhos. Isso amplia o espaço de resistência. Comemorar vitórias não atrapalha, mas fortalece a nossa desafiadora luta coletiva. Pense direitinho.>
(E que fique claro: celebrar essas vitórias não significa desviar o olhar das obrigações do Estado. Continuar cobrando punição efetiva dos agressores e proteção real às vítimas - inclusive crianças envolvidas nesses relacionamentos - é parte indissociável da mesma luta. Exaltar quem se protege e exigir que todas possam se proteger são lados da mesma conquista.)>
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