Arte e Cultura: a ruptura necessária

Sempre que se tentou politicamente direcionar a criação a determinadas tradições e identidades, boa coisa não rolou na história

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  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 20 de março de 2024 às 05:00

Arte e Cultura: a ruptura necessária

Diversos são os conceitos de Cultura. As discussões em torno disso, também. Mas de uma forma geral, é comum se caracterizar a Cultura como um “conjunto de conhecimentos, costumes, crenças, padrões de comportamento, adquiridos e transmitidos socialmente, que caracterizam um grupo social”, como define o Michaelis. Essa definição faz coro a diversos outros dicionários, enciclopédias, bem como sites e artigos encontrados na internet, que, de uma maneira, ou de outra, vão ao encontro de determinadas palavras e conceitos bastante próximos ou análogos.

Essa visão ampliada de Cultura provocou, nas secretarias e no ministério responsáveis por políticas para as Artes, uma ampliação do espectro de ações, programas e editais.

Num país como o nosso, onde a tradição, os costumes, crenças e os saberes se misturaram num caldeirão cultural único, potente e sólido, foi mais do que importante. Era fundamental que acontecesse. A cultura brasileira, e seus diversos matizes regionais e estaduais, são uma preciosidade inestimável de nosso país. Ao contrário de diversos países que escantearam saberes, tradições, costumes e crenças que lhes davam um caráter peculiar e distinto, em busca de algo mais cosmopolita, moderno e conectado a novos meios e maneiras, a cultura brasileira virou um referencial e segue sendo parte estruturante de nossos comportamentos cotidianos.

Seja através de influências, ecos, vestígios que foram se moldando e se metamorfoseando com o tempo, ou seja em costumes claramente conectados a tradições, nossa cultura diversa e plural borrou todas as fronteiras, e é fácil percebê-la desde nossas danças tradicionais e folclóricas à nossa culinária, desde nossos cultos às nossas festas profanas; estão lá elementos facilmente identificáveis que representam nossas manifestações culturais.

Com a Arte não poderia ser diferente. Ao contrário de uma visão mais homogênea e ligada a uma contemporaneidade que podemos identificar em diversos museus, teatros e escritas mundo afora, o Brasil junta-se a um grupo onde se permanecem vivas as tradições e traduções de nossa cultura, mesmo na Arte.

No entanto, temos um nó a ser desatado, em meio a isso tudo.

A Arte é parte de nossa cultura? Sim. Mas transcende e transubstancia ela, também. Inclusive, passa a ser arte quando sai das baias da Cultura e faz caminhos completamente distintos, inusitados, distorcidos, surpreendentes e novos. Inspirar-se em nossa ancestralidade africana? Sim. Assim como se inspirar em marcianos voadores. Mais ainda, na arte pode-se contar sobre nossa ancestralidade marciana tanto quanto sobre africanos voadores.

A Arte precisa estar conectada à tal brasilidade? Não. Inclusive, o artista parte da liberdade, inventividade e inspiração/provocação para falar tanto de um astrofísico setecentista do Zimbábue quanto de uma aldeia de pescadores da Islândia. Pode pintar carretéis, pirâmides, ou formas abstratas, e pode escrever canções que se inspirem em cantos mongóis. Pode criar um diálogo entre a lua e uma baleia, ou a dança de uma anêmona ao som do impacto de dois asteroides.

A Arte questiona conhecimentos, subverte costumes, critica crenças, tensiona padrões de comportamento.

A Arte não tem compromisso com a tradição e nem com a ancestralidade. A Arte desconstrói identidades, e pode negar, bagunçar, subverter manifestações tradicionais e regionais, saberes originários e desenraizar-se dos fazeres herdados.

No entanto, esse limiar entre a Cultura e a Arte, essa fronteira, ou fosso, abismo onde se revela a distinção e separação de ambas não tem sido comumente considerados.

Seguidamente, editais, programas, curadorias têm associado e praticamente imposto em seus critérios de avaliação e escolha que a Arte esteja associada às tradições e saberes culturais, em busca de identidades, raízes, ancestralidades e fazeres.

De repente, a Arte, com suas transgressões, sua liberdade criativa, seu caráter inusitado, deformador, provocador, deslocado e distorcido, se vê obrigada a ir contra sua essência primordial, em busca de cânones e padrões sociais e tradicionais.

É preciso dissociar a Arte da Cultura. Ao menos, desta visão da Cultura.

Que o MinC e as secretarias de cultura dediquem boa parte de seu orçamento e políticas à nossa diversa e plural cultura brasileira, é mais do que válido, é necessário.

Mas que o MinC e as secretarias de cultura criem uma pasta, uma subsecretaria, uma diretoria, que seja, para as Artes.

Simplesmente Artes.

Com seus saberes e comportamentos distintos. Com suas particularidades, distinções e deslocamentos.

É preciso que se trate as Artes em suas características e dinâmicas particulares.

Devem ser critérios artísticos. Análises artísticas. Qualidades artísticas. Valores artísticos.

Uma diretoria, ou secretaria, ou fundação voltada apenas e somente às artes, com uma pequena parte do orçamento que seja. A Arte brasileira teria sua atenção devida, teria seus potenciais artísticos como foco, e uma política que fugisse a tudo mais que não fosse do reino da Arte.

Não seria elitismo, ou segregacionismo, ou qualquer ismo que queiram usar acusando as políticas para este setor. Pelo contrário. Estimular a arte em toda sua subversão, crítica, provocação e explosão imaginativa é propiciar à população uma outra percepção e sensibilização que fuja à realidade concreta e à objetividade e praticidade cotidiana.

Seria apenas uma atenção devida a uma manifestação cultural que, sendo o oposto da tradição, dos costumes, da ancestralidade, transubstancia e subverte os valores da Cultura e, justo por isso, é também muito importante para nossa sociedade.

É importante que uma criança saiba o que é um cavalo. Mas é importante também que ela fantasie um unicórnio. É fundamental que uma criança aprenda que não pode voar. Mas é transcendental que ela imagine que poderia ir sozinha até a lua.

A arte é essa distorção do real que nos serve como um descanso, ou provocação da realidade. É um desloucar, como diria Günther Anders, mais do que necessário ao ser humano. Ou, como bem disse Friedrich Nietzsche, “A arte existe para que a realidade não nos destrua”.

Sempre que se tentou politicamente direcionar a criação a determinadas tradições e identidades, boa coisa não rolou na história. O dirigismo pressupõe restrição, mediocrização, castração, repressão e até censura.

Enquanto as políticas para as artes exigirem critérios que amarrem a Arte aos fazeres e saberes culturais comuns de um povo, região e/ou país, a realidade seguirá destruindo a Arte em sua essência primeva que é, muitas vezes, a de subverter, provocar, distorcer ou até mesmo ser o oposto do que entendemos por nossa Cultura.