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Gil Vicente Tavares
Publicado em 25 de abril de 2025 às 05:00
É atribuída uma frase a Nelson de Araújo, falecido professor, dramaturgo e pesquisador, figura importante da Escola de Teatro da UFBA (ETUFBA), que dizia algo como: o problema da nossa Escola é que ela não sai do Canela. >
Conheci a frase já com uma análise subsequente, criticando um problema que acomete diversos setores da província. A falta de diálogo com a criação e o pensamento ao redor da cidade, do Estado, do país e mesmo do mundo, bem como um excesso de autorreferencialidade vesga são também problemas recorrentes que sim, aqui e ali, poderiam historicamente serem relacionados à instituição à qual pertenço, desde 2015 como professor efetivo, e desde 1995 como aluno.>
Mas me parece claro que a crítica do saudoso professor é mais uma provocação do que uma constatação absoluta. Pelo contrário, desde sua fundação, em 1956, até hoje, podemos ver a ETUFBA como centro nevrálgico da criação artística da cidade, do Estado, do país e mesmo do mundo. >
Alguns dos nomes mais expressivos do teatro, do cinema e até da música passaram pela nossa Escola e a projetaram e se projetaram nacionalmente e até internacionalmente. A Cia de Teatro da UFBA sempre marcou presença expressiva nas premiações locais, marcou história no Festival Universitário de Teatro de Blumenau, e concorreu, recentemente, com 90 espetáculos do Brasil inteiro, sendo finalista do Prêmio Shell de Teatro na categoria destaque nacional. >
A produção de estudantes vem se destacando na cena local, através de temporadas, carreira profissional e premiações, também, reforçando a expressividade e contundência da nossa criação acadêmica que, além de tudo, vem sendo referência na pós-graduação em artes cênicas do país. Temos nota máxima na CAPES e relevante produção nas áreas de pesquisa, extensão e publicação, além de teses premiadas nacionalmente. Pois é, a ETUFBA é referência em diversos segmentos artísticos e acadêmicos, é uma unidade de produtividade e relevância incontestáveis.>
Incontestáveis?>
Acabou de sair aqui no Correio uma reportagem sobre 9 obras abandonadas da UFBA. São casos dos mais absurdos e revoltantes. Curiosamente, e tristemente, não consta uma décima obra abandonada. >
Nosso tão necessário anexo da ETUFBA, com salas de aula e laboratórios de pesquisa e criação, salas de professores, uma sala preta multiuso para apresentações da produção discente e docente, dentre outros, segue como ruína, no Canela, ao lado do histórico casarão em que a escola foi fundada, onde encontra-se nosso Teatro Martim Gonçalves. Claro que há um problema da iniciativa privada, pois a obra foi interrompida por falência da empresa que ganhou a licitação. Mas e aí? Isso faz anos, muitos anos, e nada foi feito desde então.>
Ficar de fora da lista da reportagem, que me foi alertada por uma colega de departamento, talvez traduza uma contradição que vem prejudicando o bom funcionamento da instituição há décadas. Estamos fora da lista dos recursos para o término da obra, entra ano e sai ano. Entra ano e sai ano e novas promessas de que seremos prioridade no próximo orçamento surgem. Nossa situação parece aquela da criança que sempre pede algo no mercado e a mãe ou o pai diz: na volta a gente compra.>
A frase de Nelson de Araújo ganhou uma versão nova: o problema da nossa Escola é que ela não volta para o Canela.>
Estamos há anos em condições precárias pulando de pavilhão em pavilhão, em salas inadequadas, com um espaço improvisado para apresentações, também precário; e isso quando temos sala para nossas aulas, e quando conseguimos conciliar demandas e ofertas para apresentações e ensaios.>
Não temos uma cantina. O que parece bobo, não é. Dispersos, não nos encontramos para as conversas do dia-a-dia, e projetos, resoluções, ideias e problemas acabam reprimidos, represados, ocupando espaços de reuniões e gerando uma tensão interna desnecessária. >
Eu e colegas por vezes nem conhecemos estudantes que passam pela ETUFBA, a dispersão e desestímulo impactam diretamente, e gerações e gerações seguem se graduando em condições precárias, o que claramente prejudica suas formações e compromete nossas condições de trabalho.>
Não faz muito tempo, reitores se posicionaram sobre o orçamento insuficiente destinado a suas universidades. Entra greve, sai greve, e enquanto judiciário, legislativo e executivo, que já ganham muito bem, seguem aumentando seus salários, temos que acatar propostas e reajustes fora da realidade e distantes das reais necessidades do ensino superior público. Vivemos, hoje em dia, entre a cruz e a espada. De um lado, a direita, que foi empurrada à extrema direita e segue confortável, não só se lixando para nosso problema mais grave, a desigualdade social, como sempre tentando destruir com nossas instituições públicas que ainda tentam, aos trancos e barrancos, diminuir as injustiças de um país tão desigual. E cuja raiz está numa concentração de renda e num sequestro privado da verba pública que faz com que políticos sigam usando o erário em benefício próprio, para seus interesses e das classes dominantes que se julgam donas do país.>
Mas do outro lado temos a dita esquerda. A cada nova eleição, setores como os da cultura e da educação seguem renovando seus votos de que governos mais à esquerda irão dar maior atenção a essas áreas, e as decepções se renovam seguidamente.>
Imprensada entre a educação e a cultura, a ETUFBA segue sem poder executar seu projeto pedagógico em condições satisfatórias, e sem uma perspectiva profissional para seus egressos, frente ao desastre das políticas públicas para as artes.>
O problema da nossa Escola é que não somos prioridade porque educação e cultura parecem não ser prioridade. Uma instituição com quase 70 anos de contribuição relevante e significativa para a educação e a cultura do país, parace não ter relevância e nem significância suficientes para que tenhamos condições decentes de seguir produzindo ensino, extensão e pesquisa de qualidade.>
Cansa. Entristece. Decepciona. Vemos isso na cara do corpo docente e discente. Vemos isso refletido nos escombros de um futuro em ruínas. Nelson Rodrigues dizia que o teatro era o cadáver mais saudável que ele conhecia. Nós não vamos parar, como nossa construção, que se deteriora mais a cada ano. Seguiremos com brilho nos olhos, apesar das trevas.>
Mas não podemos nos calar, também.>
Atualmente, o maior problema da nossa Escola é que ela não volta para o Canela.>
E, de promessa em promessa, seguimos sorrindo para nossa sociedade com a máscara da comédia, enquanto por baixo nossos rostos seguem remoendo nossa tragédia sem fim.>