Ninguém é cidadão

Claro que vivemos em meio à barbárie de civis incivilizados, no entanto, quanto mais limpa, organizada e ordeira uma cidade, mais seus cidadãos se sentiriam impelidos a serem assim.

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  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 27 de novembro de 2023 às 09:20

Certa feita, conversava com um conhecido sobre política, e ele me contou um fato bastante interessante. Curioso sobre a política japonesa, ele havia perguntado a um conhecido do Japão sobre o prefeito de sua cidade, ao que o japonês respondeu com total desconhecimento sobre qualquer perspectiva personalista. Ele havia dito que em seu país os políticos são gestores, pagos por nossos impostos, para cuidar da cidade, das províncias, e que o voto era simplesmente uma reação pragmática a partir da maneira como o político havia conduzido sua gestão. Se ele havia cumprido com suas obrigações de administrar, organizar, gerenciar, modernizar, estruturar as diversas demandas para um bom funcionamento da cidade, ele estava apenas fazendo o que devia ser feito, justamente por isso não gerando nenhuma atenção ou personalismo por parte da sociedade.

Dia desses, fui confraternizar com o elenco depois de nossa apresentação de Um Vânia, de Tchekhov, no Teatro SESC Casa do Comércio. Ao voltar para casa, eis que me deparo com uma moto estacionada exatamente em frente à minha garagem, quase colada ao meu portão.

Em meio ao caos e à violência em Salvador, fiquei totalmente inseguro com qualquer das alternativas solitárias que eu poderia optar para entrar em minha própria casa, às 2 da madrugada.

Estacionar e tentar abrir o portão? Eu estaria vulnerável estacionando na rua, e poderia derrubar a moto de alguma pessoa que, frente ao absurdo de estacionar à noite em frente a uma garagem e sumir, poderia reagir das piores formas possíveis.

Prontamente, liguei para a polícia, pedindo ao menos uma viatura para me acompanhar, enquanto eu agia de alguma maneira para entrar em casa, e liguei também para a Transalvador, pedindo a remoção do veículo.

Uma hora depois, rodando de carro pelas redondezas à busca de alguma viatura em ronda, para abordá-los e pedir ajuda, resolvi ir mais distante de casa, e me deparei com uma viatura parada, em local estratégico do centro da cidade.

Saí do carro, pedi ajuda, o policial disse que não poderia sair dali, até me deu número de subcomandante, mas nada adiantou. Eu deveria aguardar contato da polícia, ou a ação de remoção pela transalvador.

O resumo da história foi que, com o dia amanhecendo, me senti mais seguro para estacionar na rua, e arrisquei abrir a garagem, torcendo para não derrubar a moto. Sim, se eu derrubasse e danificasse a moto, poderia estar sob risco de cobrança ou ameaça, em frente à minha casa. Por sorte, o portão passou raspando, e consegui entrar em casa quase 3 horas depois de diversas ligações e tentativas.

Mudei-me para o Garcia em 1996. Há 27 anos, quase bodas de pérolas, venho reclamando do som altíssimo dos vizinhos, ao órgão responsável, da prefeitura, e às vezes sobre gente estacionando em minha garagem.

Há 27 anos, nunca ninguém veio, nunca ninguém resolveu nada.

Não era de se esperar que, justo na madrugada, houvesse algum cuidado e dedicação de órgãos públicos pela minha segurança e direito de ir e vir.

Enquanto rodava de carro, sonolento e transitando entre indignado e resignado, comecei a pensar no verso “ninguém é cidadão”, da canção Haiti, de Gil e Caetano.

Quase sempre que trafego pelo asfalto de péssima qualidade de Salvador, ou que me atraso em engarrafamentos por conta da engenharia de tráfego incompentente, ou que vejo o descaso com o trato do lixo na cidade, ou que demando algum suporte de órgão público, no exercício obrigatório de sua função, e não sou atendido, acabando sempre prejudicado, eu penso o quanto somos totalmente desassistidos como cidadãos.

Claro que vivemos em meio à barbárie de civis incivilizados, que ouvem som alto, estacionam na frente de garagens, jogam lixo no chão, e são totalmente reativos e violentos à possibilidade do diálogo e do acordo e respeito entre as partes. No entanto, quanto mais limpa, organizada e ordeira uma cidade, mais seus cidadãos se sentiriam impelidos a serem assim.

Se os órgãos públicos funcionassem de forma competente e eficaz, naturalmente as multas e punições da lei contra infrações coibiriam os incivis. Projetos educativos, de conscientização, também.

Mas vivemos em meio ao caos, aplaudindo como exceção louvável ações que deveriam ser obrigatórias, quase agradecendo aos gestores públicos pelas suas ações e laivos de eficiência.

Ninguém é cidadão. Pagamos impostos parecendo que estamos pagando a alguma milícia que toma conta de nossa região para que possamos viver por aqui. E torcer para que algumas coisas funcionem, que sejamos contemplados com alguma ação positiva, acuados, em situação vulnerável, em meio à barbárie, até mesmo com medo de reclamar e sofrer retaliações. Sim, estamos sempre sob o constrangimento de exigir o mínimo dos gestores, e sermos acuados e advertidos por isso.

Enquanto parece que no Japão os políticos são invisíveis, pois fazem o que deveria ser o usual, gerem e cuidam de suas instâncias de gestão de maneira eficiente e pragmática, aqui, seguimos lembrando da ineficiência e falta de cuidado que a gestão pública tem para com a gente a todo momento. Mais do que qualquer um, ela faz questão de carimbar em nossa testa, a cada descaso, desprezo e irresponsabilidade com o emprego que lhe é concedido e pago por nós, a frase da canção Haiti:

Ninguém é cidadão.