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O Brasil violado - hímen e direito rasgado

Tenho pensado muito na peça de Dias Gomes e no direito da pernada, outro termo dado às primícias, vendo o Brasil atual e suas discussões sobre impostos abusivos e anistia aos criminosos golpistas

  • Foto do(a) author(a) Gil Vicente Tavares
  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 14 de julho de 2025 às 11:30

Na peça As primícias, Dias Gomes põe em cena uma lei antiga, medieval, de o senhor feudal ter direito à primeira noite com as noivas da cidade, logo depois de seus casamentos. Sim, ao senhor feudal era dado o direito de tirar a virgindade, dormir com a mulher antes do marido recém-casado com ela.

Não há base jurídica, religiosa, moral, ética, que sustente tal direito. Mas ele existia, e como não havia poderes mais amplos, que pudessem coibir ou contrapor regras locais, cabia à população apenas aceitar, se submeter. E, geralmente, ao longo da história, a maioria se submete e ainda condena quem é contra, mesmo que seja algo absurdo, opressor, explorador, perverso.

No texto de Dias Gomes, um casal resolve se rebelar, tenta ter sua primeira noite na igreja, local em tese mais protegido e escondido, mas acaba por ser cercado pela população local, que vai à sua caça em busca da justiça(?). Inclusive, casais de noivos que acabaram por se submeter a essas primícias.

Sim, os principais injustiçados, humilhados, tomam a frente da caçada ao casal insurreto. A regra tem que ser cumprida, e se eles se submeteram a ela, mesmo a contragosto, que todos se deem mal do mesmo jeito.

No livro A construção da ordem/Teatro de sombras, de José Murilo de Carvalho, vemos como o Brasil criou sua estrutura de poder e leis a partir dos donos do poder, no século XIX, e sempre em benefício próprio. Algo quase natural, lógico, óbvio, visto que é tradição, notadamente no Brasil, que se trate o erário como bem de direito de quem manda.

Tenho pensado muito na peça de Dias Gomes e no direito da pernada, outro termo dado às primícias, vendo o Brasil atual e suas discussões sobre impostos abusivos e anistia aos criminosos golpistas.

Entre os que vociferam contra valores do IOF, ao serem questionados sobre a proposta do governo de taxar grandes fortunas e o país ter uma melhor justiça tributária, a preocupação é sobre si mesmo, e não sobre o país.

O mesmo acontece em relação à indignação quanto aos processos jurídicos envolvendo militares, assessores e políticos numa trama golpista e assassina, bem como dos cúmplices dos atentados à democracia e aos bens públicos federais.

Ninguém está ali a discutir se foi certo ou errado, e sim quem fez, quem se beneficiou ou quem se prejudicou.

Uma taxa alta de IOF prejudica compra e negociação em euros, dólares. Atrapalha planos de viagem. Investimentos. Afeta a parte alta da pirâmide social. Taxar grandes fortunas, a mais alta. A justiça tributária tiraria mais de quem menos precisa, e seria mais justa com a parte de baixo da pirâmide. Que é historicamente a que existe para ser explorada e não ter direitos equânimes.

Julgar e prender uma senhora que apoiou golpe, invadiu e depredou prédios públicos federais é um absurdo porque em momento algum está se analisando o feito da pessoa, mas de onde ela vem. A depender da classe social, do tom da pele, da família à qual pertence, ela tem uma espécie de imunidade a priori. Não se pode tratar uma senhora branca sulista de família estruturada, temente a Deus, como se trata um sem-terra cafuzo do interior da Paraíba que, de resto, pouco interessa saber de sua vida. Mesmo com família estruturada e temente a Deus, será apenas mais um 'paraíba'. A senhora invadir e depredar os prédios dos três poderes em busca de um golpe contra a democracia é direito cidadão; merece anistia. Um 'paraíba' invadir terras improdutivas privadas em busca de reforma agrária é terrorismo; merece punição.

Pouco importa, nisso tudo, que o que urge para o país é uma maior justiça tributária, taxando grandes fortunas e isentando trabalhadores que seguem vendando o almoço para pagar o jantar.

Pouco importa que devamos, antes de tudo, defender a democracia, e ser contra qualquer ameaça, atentado, terrorismo, violência ao estado democrático de direito. E pouco importa, também, que só com uma reforma agrária efetiva, dentre outras ações, podemos vislumbrar um futuro menos desigual.

A impressão que tenho é que se Trump criasse algum malabarismo retórico, e, com isso, justificasse e mandasse o FBI sequestrar e prender em Guantánamo o presidente Lula, parte considerável da população comemoraria “a prisão do pinguço”, “do ladrão”, a erradicação do comunismo, o restabelecimento da ordem e de um país melhor.

Por mais que ferisse todas as leis internacionais, e fosse a maior aberração política da história da humanidade, destruindo a soberania nacional, o fato de se acabar com o governo Lula, prendendo o mesmo, seria justificativa suficiente para um ato assim, e motivo de júbilo e comemoração.

Basta ver a recente taxação de 50% imposta por Donald Trump. Há quem, no Brasil, comemore, pois está ligada a interesses pessoais no xadrez político. É tudo tão escandalosamente absurdo, na ação do presidente Trump, e na forma como ele abertamente anunciou suas razões, que, como bem disse o Nobel de Economia, Paul Krugman, se os EUA “ainda tivessem uma democracia funcional, essa aposta contra o Brasil seria por si só uma base para um impeachment” do presidente estadunidense.

Mas é claro que, daqui, as pessoas chamariam de ditadura qualquer ação neste sentido, como chamam de ditadura o devido processo legal impetrado pelo STF aos criminosos e terroristas. Porque se está mexendo com quem a pessoa apoia. Porque está atingindo a cor ideológica com a qual a pessoa se identifica.

E o que as primícias têm a ver com isso tudo? É muito simples, caso não tenha percebido. O direito do senhor feudal pode ser o mais sórdido, opressor, escroto, injusto do mundo, mas é o direito do senhor feudal, do dono, do rico, do que manda, governa. Suas condição de classe superior, abastada, lhe dão o salvo conduto para seguir com as regras, leis e direitos como melhor lhe aprouverem.

Só não pode beneficiar o outro lado, ou fazer justiça social. Porque aí é comunismo, é ditadura, é opressão, é atentar contra Deus, pátria e família.

Por mais que o Deus que essa gente acredita fosse contra o absurdo dessa gente. Por mais que suas ideias violentem e desrespeitem a pátria. E por mais que o conceito de família, para essa gente, só sirva quando se trata da família que age e pensa como a sua. O resto, é só um grande problema quanto aos direitos da ralé. Que podem ser suprimidos, devassados, violados pelos donos do poder.

Como o hímen das noivas medievais.