O monstro, o spoiler e a traição

Dei-me conta já há uns anos que não existe nada mais sem graça do que recomendar livros ou filmes contando suas histórias e seus temas

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  • Gil Vicente Tavares

Publicado em 2 de abril de 2024 às 16:57

A primeira vez que ouvi a palavra spoiler foi em sala de aula. Estudantes da Escola de Teatro discutiam algum assunto comigo até que alguém falou algo do tipo “não vou dar spoiler”, ou “vou dar spoiler”.

Recorri ao meu inglês enferrujado e não me veio nada. Fui ao google tradutor e lá estava a tradução de spoiler: spoiler.

Meio sem graça com a segurança com que todos usavam e entendiam a palavra, perguntei o que ela significava.

Isso faz tempo, e desconfio que mais ninguém tenha dúvidas sobre seu significado.

Eu, no entanto, tenho dúvidas sobre sua importância. Ou, na verdade, com o problema de haver spoiler.

Certa feita, saindo do cinema, passei com amigos por uma fila de pessoas que iriam assistir a alguma Paixão de Cristo. Um dos amigos falou alto que não gostava do filme porque o personagem principal morria no fim. O pessoal da fila riu, alguém revidou brincando que ele havia estragado a surpresa, e eu, meio lerdo, só me dei conta depois que ele brincava de… De dar um spoiler!

Eu ainda nem conhecia a palavra, mas geralmente as coisas existem antes de terem nome (com raras exceções como a palavra nome, que já surgiu tendo o nome de nome).

Sempre que se cria uma obra artística a partir de algum mito, se o autor não quiser dar uma de criativo em excesso, todos que se interessam pelo mito já sabem o final. E o meio. E até mesmo o início.

Se formos falar de Cristo, ou Édipo, ou Marighella, os reais interessados pelo mito estarão indo ao cinema, ou ao teatro, ou lendo para ver como tais artistas, escritoras e escritores contaram aquela história.

“O tema pouco importa”, diria um soneto de Ildásio Tavares.

A bem da verdade, pouco me importa a história. Ou do que ela trata. Ou os assuntos e temas que são evidenciados na obra. Confesso, inclusive, que quando alguém me diz que tal obra é surpreendente, eu já sinto um imenso cansaço antecipado de tentar assisti-la. Não porque eu não goste de ser surpreendido, mas porque geralmente fala-se isso quando o surpreendente é alguma revelação bombástica, ou virada inimaginada, ou fim inesperado.

Jorge Luis Borges dizia que não existia deselegância maior do que surpreender seu leitor, e se eu começo a lembrar das obras que mais amei ler ou assistir, prontamente o que me vem à cabeça elogiar é a forma como aquela história foi contada. Técnica, sofisticação e estilo vão florescendo entre cenas, personagens, situações em que a beleza da escrita, a densidade dos assuntos, a poesia das palavras e a sutileza das relações se amalgamam numa ourivesaria delicada e ao mesmo tempo contundente.

Nenhuma surpresa.

Inclusive fins muitas vezes sem graça.

Para ficar na literatura, bastamos lembrar de clássicos como O processo, Crime e castigo e Coração das trevas, e, rapidamente, repassando esses romances na mente, não me vêm grandes surpresas e nem tampouco um grande final impactante.

Assisti ao filme Monster (2023), do renomado diretor japonês Hirokazu Kore-eda, recentemente, e há algo no filme que me surpreendeu muito (sim, foi uma proposital contradição). É um filme contado sob três pontos de vista distintos; um recurso estilístico tradicional por lá, e a condução disso é o grande trunfo do cineasta japonês.

No primeiro, algumas questões sobre personagens e situações nos alimentam com várias possíveis suposições das mais impactantes.

Quando o filme é retomado através do segundo ponto de vista (olha o spoiler aí, minha gente!), várias possíveis desconfianças começam a perder sua força, até que da terceira vez que a história é contada… A gente vê a normalidade de tudo, sem nada que fuja a situações normais envolvendo mães, professores e estudantes.

Não é um filme sensacional, mas esse aspecto o coloca numa estante diferenciada justamente porque dá uma rasteira nas expectativas daqueles que ficam à caça de enigmas, surpresas, mistérios, reviravoltas e peripécias.

E o tema do amor entre dois meninos, que poderia facilmente caminhar para um libelo contra a homofobia, ou pela causa gay, acaba sendo um leve afago no girar da película.

Dei-me conta já há uns anos que não existe nada mais sem graça do que recomendar livros ou filmes contando suas histórias e seus temas. Todos os romances, as peças e filmes que mais amo são pouquíssimo sedutores quanto aos temas, assuntos e histórias. Eu sempre ficava inclinado a repetir a frase: “tem que ler”, ou “tem que assistir”; porque o que vale mesmo é navegar pelas palavras, pela nebulosa atmosfera em vertigem que sinto com grandes autores que inventam mundos, submundos e viramundos para mim e em mim.

Mas há os que amam ser surpreendidos, e contam com olhos vibrantes os impactos sentidos, como estão muitas vezes mais interessados no tema, ou nos assuntos tratados na obra.

A escrita pode ser frágil, o elenco pode ser fraco, a dramaturgia pode ser inconsistente, mas falam de tal tema urgente, tocam em determinadas questões que são as palavras-chave de qualquer mesa engajada e politizada.

E aí, de repente, o entusiasmo com a obra deve-se a dois pólos extremos: a tudo que a pessoa descobre que não sabia, por um lado, com suas surpresas e revelações, e a tudo redundante e já sabido e exaltado ou contestado que a pessoa leva debaixo do braço como verdade, necessidade e luta.

As fragilidades da obra, como obra de arte, pouco importam. São, ademais, relevadas, ou mesmo tidas como desimportantes e irrelevantes. Chega a parecer que o que menos interessa na obra de arte é a arte obrada.

Às vezes, dá a impressão de que as pessoas preferiam uma Capitu mais empoderada. Ou que alguma virada surpreendente revelasse que ela traiu, ou não.

As sutilezas da obra de Machado de Assis parecem incomodar ao ponto de sempre se voltar à conversa do traiu ou não traiu, como se uma das pedras de toque de Dom Casmurro não fosse justamente a maestria com que o bruxo do Cosme Velho leva sua história até o final.

Monster é uma boa provocação que quase serve como um negativo de foto. Vemos o contrário, o contraste da foto esperada.

E, ao fim, são apenas crianças correndo felizes por entre os matos, e a terra lhes sendo leve.