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Kátia Borges
Publicado em 13 de dezembro de 2020 às 05:16
- Atualizado há 2 anos
Mikhail Kalashnikov, inventor do fuzil de assalto, preferia ter criado um cortador de grama. Foi o que disse antes de morrer, em 2013, aos 94 anos. “Arma de ofensa”, assim a chamava, desgostoso diante da disseminação sem controle de sua “arma de defesa”. Ao fim de sua vida longeva, as consequências da invenção causavam uma “dor espiritual”.>
Um atirador, usando um dos fuzis inventados pelo funileiro russo, consegue alcançar um alvo a quatrocentos metros. Mas, caso erre, o projétil perdido poderá machucar alguém em um raio de distância que é, no mínimo o dobro. Suas balas, consideradas como “de alta velocidade”, são capazes de cavar um buraco no interior das pessoas.>
Alguns médicos as comparam a uma granada que, dentro do corpo humano, explode os órgãos. Sobreviver ao disparo é considerado um milagre. Em 22 de novembro desse ano, Brenda González, 6 anos, que mora em Ponta Porã (MS), perdeu parte do nariz ao ser atingida por um tiro de fuzil. A bala perdida atravessou a sua pequenina boca.>
Ela conseguiu sobreviver, a despeito do extremo sofrimento que atravessou no processo de cura. A mesma chance foi negada a outras crianças na linha de tiro. No final do ano passado, Agatha Félix, 8, foi baleada nas costas no Complexo do Alemão (RJ). Sua imagem, fantasiada de Mulher Maravilha, correu o mundo.>
Este mês, as primas Rebeca, 7, e Emily, 4, também foram mortas. Elas brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense (RJ). Os disparos atingiram a cabeça e o abdome. Uma criança nessa faixa de idade costuma pesar menos de 40 quilos e ter menos de um metro. Granadas em forma de balas dilaceraram seus corpos.>
Levantamento da ONG Rio de Paz registra a ocorrência de dez casos semelhantes somente em 2020, um triste recorde ao qual, infelizmente, precisamos acrescentar um “por enquanto”. No ano passado, foram oito crianças mortas por balas perdidas. A maioria das vítimas é preta e moradora de áreas periféricas.>
Não há abrigo seguro para quem habita as periferias em qualquer parte. Seus moradores são vistos sempre como cidadãos de segunda classe, alvos móveis, e isso independe de idade. Me pergunto até quando choraremos de vergonha e angústia por mais uma vida devastada pela violência. A aposta em um “novo normal” nunca foi solução para nada. É preciso mudar as coisas.>